O fluxo é o centro nervoso da cracolândia de São Paulo. Centenas de corpos vagueiam ao redor dos caixotes onde são depositados pratos com pedras de crack. Os olhos dilatados cobiçam. Nessa feira distópica, os dias de alto faturamento têm recompensa. O traficante pega um punhado de crack, joga para cima e grita: "Aleluia de drogas!". Viciados balbuciam entre si enquanto se engalfinham na imundice do asfalto por um naco das pedras.
Até as benesses terminam em briga neste ambiente de exceção, situado num trecho da Alameda Dino Bueno. Os frequentadores do fluxo têm cicatrizes aparentes e as pichações do PCC (Primeiro Comando da Capital) indicam quem está no topo da cadeia alimentar. Antes da pedra, os clientes precisam obedecer à facção. Mas a violência não é um fim em si: serve de ferramenta para fazer dinheiro. A lei da cracolândia é o lucro.
Noite após noite, o usuário vai beber, cheirar e fumar até cair desmaiado. Acordará na pior das ressacas e com o corpo implorando por água, que só virá se o bolso tiver R$ 0,50 para dar, num copo cheio dela.
A pandemia de covid-19 reduziu o número de usuários vivendo sob a ditadura da pedra, mas o quartel-general da cracolândia voltou aos níveis anteriores à crise sanitária. No período de janeiro a novembro de 2021, a média diária foi de 599 usuários percorrendo o fluxo, segundo levantamento da Prefeitura publicado pela Folha de S.Paulo. No mesmo período de 2019, a média era de 526 pessoas.
A Prefeitura de São Paulo enviou nota informando que considera os números estáveis. "Os valores se mantiveram estáveis seguindo o padrão variável da concentração de usuários) devido às ações integradas de assistência social, saúde, segurança urbana e governo", ressalta trecho da resposta.
Seja antes da pandemia ou agora, no fluxo os cachimbos estão acesos 24 horas por dia. A cracolândia é a São Paulo que nunca para. Mas é inegável que a movimentação é menor pela manhã, justamente o período da contagem da Prefeitura. Maurício Regis Nunes Martins, 43, fala que, nas noites, ele e mais cerca de 2 mil pessoas varam a madrugada nas calçadas da Dino Bueno.
Dirigente do projeto "Da pedra para a Rocha", que atua há 10 anos dentro da cracolândia, o pastor Rica afirma que a estimativa de Maurício Regis é mais próxima da realidade do que a estatística oficial.
"Pode falar que tem 500, 600 habitantes fixos ali, mas é relativo. Passa muito mais gente por lá por dia. A cracolândia é uma boca, um ponto de tráfico."
Maurício Regis era guarda municipal e virou ladrão para sustentar o vício
Imagem: Felipe Pereira
A cracolândia exerce magnetismo nos usuários por ser um lugar seguro para fumar e por oferecer a melhor variedade de crack e cocaína da cidade, atrativos que geraram uma população fixa de moradores que acordam cada dia em um horário, mas sempre necessitando de água. Aplacada a sede da ressaca, tomam banho nos equipamentos públicos da Prefeitura, momento em que a degradação de alguns é manifestada.
Um homem voltou para o fluxo com o cabelo gosmento de xampu e espuma escorrendo pelas costas. A perda de discernimento indica um estágio avançado de deterioração, mas o crack é escravidão porque a bússola de um cérebro cada vez mais falho continua apontando para a próxima pedra. Quando Maurício Regis sai da cracolândia, o que causa estranhamento é a fatia saudável e alimentada da humanidade.
Mas é com essas pessoas que ele vai manguear [pedir esmola]. Para os moradores do fluxo, também vale catar reciclado, limpar para-brisa de carro em farol e prostituir-se. Uma particularidade do fluxo é que ninguém no fluxo paga de santo. Os usuários admitem que o corre [crime] é uma fonte de renda. Regis diz que um parceiro mostrou como roubar.
"Ele ensinou a mapear a vítima, já puxar a faca e pedir o celular."
Na semana passada Maurício Regis não se importou com quatro corpos e continuou fumando
Imagem: Felipe Pereira
Outros frequentadores da cracolândia são mais sutis. Caso de Ricardo Marques da Silva, 43, que fala de forma indireta sobre um ramo do comércio em que já atuou.
"Independente de usar as paradas, nunca tirei nada de casa, sempre levei porque eu aprendi a negociar."
Mas Ricardo não consegue terminar de contar sua história. Desmancha-se em choro ao falar da segunda vez na cadeia. Passagem na prisão não é raridade no fluxo.
Maurício Regis foi preso por roubo, um destino que entristece o homem que, antes do crack, trabalhava na Guarda Municipal do Recife. "Quando comecei na pedra, roubei até os companheiros de farda. Deu uma 'moscadinha', escondia o celular e pegava depois."
Hoje no fluxo, um iPhone em bom estado vale R$ 300, muito dinheiro. Uma lasca de pedra suficiente para encher 10 cachimbos sai por R$ 50. Sobra para os acompanhamentos. A ideia de que o usuário vai torrar tudo em crack é errada. As tragadas são acompanhadas de goles de cachaça, cigarros e cocaína.
"Compro maço de cigarro e cachaça e vai virando e fumando, virando e fumando. Vai até o corpo aguentar. Já aconteceu de tanto eu beber, fumar e não comer, passar mal. O que mais vejo é convulsão. Já acordei no hospital depois que caí [com convulsão]", relata Maurício Regis.
Peterson saiu de Lorena (SP) para sua segunda passagem pelo fluxo
Imagem: Felipe Pereira
Nas vezes em que o envenenamento não leva ao hospital, os moradores da cracolândia se recuperam nas imediações da estação Marechal Deodoro, também no centro. São dois dias vivendo de marmitex, refrigerante e churrasco. Retalhos dos açougues e a xepa da feira vão parar num panelão. O maior estímulo que os usuários se permitem é uma cachacinha.
Esse detox começa ainda no fluxo. Carrinhos de pudim, salgados e bolos perambulam com frequência na cracolândia e quem acordou com dinheiro no bolso toma café da manhã — ainda que a tarde esteja avançada. Usuário não tem rotina, mas a ideia de que todos os habitantes do fluxo são moribundos metidos em farrapos é uma generalização falsa.
Até porque as circunstâncias de entrada são muito distintas. Se uma mulher trans usuária conseguir renda em programa social, a população fixa do fluxo pode aumentar, porque vai aparecer interessado em casamento para usufruir do dinheiro. Existem ainda os "prisioneiros da cracolândia", gente jurada de morte em sua quebrada que a família banca para viver no local.
O fluxo é lugar seguro porque suas leis regulam o roubo e os homicídios. Outra regra é permitir somente golpes abaixo do pescoço durante as brigas. Dar socos e chutes no rosto é agendar audiência com o disciplina do PCC. O habitante da cracolândia sabe dessas leis e onde pode mexer. Alguns estabelecimentos de São Paulo pertencem a "irmãos" e qualquer desordem pode virar brecha para uma exceção na premissa de evitar assassinatos.
"Esta semana tinha quatro mortos e a gente fumando do lado dos caras. Deveu aqui, paga aqui mesmo", resume Maurício Regis.
Ação policial na Cracolândia em dezembro de 2021
Imagem: Rivaldo Gomes/Folhapress
Peterson Luiz Moreira Gonçalves, 30, está na segunda passagem pela cracolândia. Frequentador em 2008, voltou a conviver com pessoas que dormem nas calçadas e conversam com o meio-fio.
"Não quero isso para ninguém, pela glória do Senhor. Vou falar para você, é difícil, mas a vida da gente é assim."
Peterson usa o vocabulário da cracolândia. As menções a Deus, Jesus, diabo e inferno são constantes. A impressão é que quando não estão brigando, os moradores do fluxo falam do sobrenatural. De fato, algumas cenas desse pedaço de São Paulo não parecem realidade.
Uma mulher de 32 anos foi presa no México por envolvimento no tráfico de drogas após conquistar fama nas redes sociais. Ivone Macedo Barrón é namorada de Fernando Antonio Lince Velázquez, 28, líder de um cartel de drogas conhecido como "El Chato".
Segundo o site britânico Daily Star, os dois foram detidos durante uma operação policial que pretendia coibir a distribuição de drogas em boates e bares na Cidade do México. A polícia apreendeu 106 sacos de maconha, 42 pacotes de cocaína, um carro cinza e uma grande quantidade de dinheiro.
Ivone ficou conhecida por ser uma "narcoinfluenciadora", mulheres e namoradas de traficantes que exibem riquezas pelas redes sociais. Elas são chamadas de "The Union Brides" e geram polêmica no país por glorificar os ganhos obtidos com o tráfico.
Nas redes sociais, Ivone diz que só dedica a sua vida ao seu filho. "Vivam a sua vida e deixem de viver a minha", diz ela em biografia. Ela acumula 42,9 mil seguidores no Instagram.
Ainda, de acordo com a publicação, a prisão de Ivone ganhou mais notoriedade depois que parte do seio dela ficou à mostra em uma foto de uma detenção policial.
Recentemente, uma outra mulher, também investigada por envolvimento com o tráfico de drogas, foi presa no México. Gaby Castillo, 26, que possui mais de 763 mil seguidores nas redes sociais, foi flagrada com pacotes de cocaína e maconha.
A popularidade das influenciadoras ajudou a criar o visual intitulado "buchona", que é caracterizado por maquiagem pesada, corpos volumosos, com intervenções cirúrgicas, e roupas apertadas.
A gangue à qual supostamente Ivone e o namorado pertencem, chamada La Unión, foi responsabilizada por inúmeros assassinatos no país. O cartel é suspeito de pendurar corpos desmembrados de membros de cartéis rivais em pontes rodoviárias como um aviso.
Ainda não há informações de quando deverá Ivone comparecer ao tribunal mexicano para ser julgada.
Fonte: https://noticias.uol.com.br
A maior e mais organizada facção criminosa do país, o Primeiro Comando da Capital (PCC), conta, há pelo menos 10 anos, com o próprio departamento jurídico para defender seus integrantes quando estão atrás das grades. A chamada “sintonia dos gravatas” é o elo de comunicação entre as lideranças encarceradas e os membros ainda em liberdade. Robusto, o esquema chegou a contar com pelo menos 47 advogados em 25 estados, além do Distrito Federal.
Uma advogada brasiliense foi condenada a 4 anos, em regime inicialmente aberto, pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT) por atuar como pombo-correio da organização e alugar um imóvel para a esposa do líder do PCC, Marcos Herbas Camacho, o Marcola, que cumpre pena no Presídio Federal de Brasília. Michelle Daianne Guimarães foi contratada como advogada da célula da facção no DF, ascendendo à unidade do sistema penitenciário federal quando os principais líderes do PCC foram transferidos para a capital da República.
Após se envolver com pessoas ligadas à organização criminosa, a defensora passou a defender dois integrantes do PCC que cumpriam pena no presídio federal. Pouco tempo depois, o número de clientes da facção saltou para 11. Para atuar em duas ações penais, a advogada teria cobrado R$ 25 mil de uma mulher que estava presa por integrar a organização criminosa.
De acordo com a sentença, ficou comprovado que o imóvel, em Taguatinga, foi alugado pela advogada justamente para servir como “casa de apoio” da organização criminosa. A profissional do direito tratava diretamente com as companheiras dos criminosos detidos e cuidava da logística quando as mulheres se mudavam de São Paulo para o DF. A defensora chegou a ter conversas diretas com a esposa de Marcola.
Na decisão, o Judiciário aponta que a advogada tinha plena consciência de que os pagamentos eram feitos pela organização criminosa para a qual ela trabalhava, não apenas prestando assistência jurídica, mas como elo entre os faccionados presos e os demais ainda em liberdade. A função de “pombo-correio” foi atribuída a ela quando a investigação flagrou uma conversa entre a advogada e um indivíduo que atende pela alcunha de “São Paulino”, na qual ele pede que ela que transmita um recado para outro faccionado.
A sentença ainda ressalta que a advogada chegou a conversar com o filho de Alejandro Camacho, o Marcolinha, irmão de Marcola e que também está preso no presídio federal. “Observa-se que Michelle, de fato, extravasava as atividades normais de uma advogada, tratando de assuntos além de meramente familiares e, ainda, expressando sua vontade, demonstrando o intuito em advogar diretamente para o faccionado. Há várias conversas da acusada demonstrando seu inconformismo com o baixo valor de seus honorários e, especialmente, quanto à desavença com a outra advogada do PCC”, aponta a decisão.
O outro lado
Bruno Ferullo, advogado de Cynthia Giglioli Herbas Camacho, esclarece que sua cliente nunca teve qualquer tipo de contato com a advogada mencionada na matéria, e que não é verdade que “a defensora chegou a ter conversas diretas com a esposa de Marcola”, tal fato nunca ocorreu. O advogado ressaltou, ainda, que Cynthia nunca ficou acolhida em “casa de apoio”, e sempre que precisou pernoitar em Brasília se hospedou em hotel.
Fonte: https://www.metropoles.com
A Polícia Federal deflagrou hoje (15) a 5ª fase da Operação Quinta Coluna, com o objetivo de aprofundar as investigações relativas à lavagem de dinheiro que teria sido praticada pelo investigado - que não foi identificado - apontado como líder de uma associação criminosa responsável pelo tráfico de drogas para a Europa a partir de aeronaves da FAB (Força Aérea Brasileira).
Os policiais federais cumprem 5 mandados de busca e apreensão em Brasília e Florianópolis, Santa Catarina. A Justiça Federal também determinou o sequestro e bloqueio de cinco imóveis; uma academia de ginástica; R$ 2 milhões, referentes a um empréstimo realizado pelo investigado; dois veículos de luxo; e R$ 1,6 milhão de contas do investigado e empresas dele.
As investigações apontam que a aquisição de bens e movimentação de valores foram realizadas majoritariamente em espécie e que o investigado teria utilizado parentes como "laranjas". Também é investigada a utilização de empresas de fachada para dissimular a propriedade de imóveis e movimentação de vultosas quantias.
Os investigados responderão pelos crimes de lavagem de dinheiro e associação criminosa, com penas que podem chegar a 13 anos de reclusão.
A Polícia Federal aponta um grupo de quatro autointitulados empresários de Brasília como os traficantes que corromperam militares da FAB. Entre eles, o filho de um diplomata italiano, Michelle Tocci. Os outros são Marcos Daniel Penna Borja Rodrigues, o Chico Bomba, Augusto César de Almeida Lawal e Márcio Moufarrege.
Três deles foram alvos de mandados de buscas e apreensão —expedidos pela juíza federal Pollyana Kelly Maciel Medeiros Martins Alves— durante a Operação Quinta Coluna, deflagrada pela Polícia Federal em Brasília no dia 2 de fevereiro deste ano.
Chico Bomba seria o chefe da organização criminosa. Os agentes apuraram que ele foi apresentado a militares da FAB por Augusto César e Márcio Moufarrege.
Em setembro, o UOL noticiou que o segundo-sargento da FAB Manoel Silva Rodrigues, condenado na Espanha, detido com cerca de 37 kg de cocaína em aeronave de apoio da comitiva presidencial, em 2019, continua recebendo salário bruto de quase R$ 8 mil, aponta o Portal da Transparência.
A prisão de Rodrigues aconteceu em junho de 2019 durante viagem de Jair Bolsonaro (PL) à cúpula do G20. A cocaína estava na bagagem do sargento que voou em uma aeronave de apoio da comitiva. Ele não estava no mesmo voo do presidente. Segundo a FAB, Rodrigues exercia a função de comissário de bordo.
Fonte: https://noticias.uol.com.br
Estudo da Universidade Federal de São Paulo avaliou programa de prevenção a uso de drogas comandado pela PM em 30 escolas da rede estadual da capital com mais de 4 mil alunos dos 5º e 7º anos do ensino fundamental
A implementação do Proerd (Programa Educacional de Resistência às Drogas e à Violência) não se mostrou eficaz em 30 escolas públicas estaduais da cidade de São Paulo, ou seja, não preveniu o uso de drogas em crianças e adolescentes. Pesquisa realizada pela Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) com 4.030 alunos do 5º e 7º anos do ensino fundamental analisou a efetividade do programa de origem norte-americana que é aplicado no Brasil pelas Polícias Militares desde 1992.
Tanto o grupo que recebeu as aulas quanto o que não recebeu, das duas classes, não tiveram resultado estaticamente significativo sobre uso recente ou iniciação ao uso de drogas nem sobre vitimização ou prática de bullying. A droga mais prevalente entre os estudantes é o álcool. No primeiro questionário, 17,31% do grupo “controle” do 5º ano iniciou o uso de álcool; após nove meses, 16,31%. Já no grupo “intervenção”, 18% iniciaram o uso de álcool, enquanto 16,27% usou álcool após as aulas do programa. No 7º ano, 34,93% dos alunos responderam ter iniciado o uso de álcool no primeiro questionário do grupo “controle”; nove meses depois o uso aumentou para 37,7%. No grupo “intervenção”, passou de 35,74% para 39,51% após as aulas.
Além disso, na parcela de adolescentes que disseram praticar binge drinking (consumo de cinco ou mais doses de álcool em uma ocasião) tinham três vezes mais chance de manter esse consumo ao final do estudo. 40 alunos do grupo “intervenção” reportaram essa prática, sendo que 24 mantiveram o consumo. No grupo “controle”, dos 35 que informaram a prática, 12 a continuaram.
A pesquisa também identificou que participar do Proerd aumentou em 93% a chance de um estudante de 7º ano reportar que tinha a intenção de utilizar cigarro no futuro e em 62% mais chances de reportar que não irá recusar ou não sabe se irá recusar maconha se ofertada por um amigo da família do que um estudante do grupo que não recebeu as aulas.
Em entrevista à Ponte, uma das autoras do estudo, a pesquisadora Juliana Yurgel Valente, explicou sobre os problemas relatados pelos policiais e as hipóteses para a não efetividade do programa em São Paulo. A pesquisa também está sendo desdobrada para analisar o conteúdo das apostilas utilizadas nas escolas.
Ponte – Na pesquisa, é apontado que o Proerd é o programa de prevenção às drogas em escolas mais disseminado no país, mas carece de avaliação sobre efetividade. O que impossibilita isso?
Juliana Yurgel Valente – Olha, eu acho que é uma série de motivos, mas o principal é que realmente não existe uma cultura muito voltada para a ciência, de um modo geral, no nosso país. Realmente, são raros os programas dentro da área da prevenção, falando especificamente dos que de fato são avaliados. A gente vê que maioria das escolas que têm algum tipo de intervenção não é avaliada. Acho que, na verdade, o Proerd é mais uma dessas intervenções sendo implementadas sem avaliação. As pessoas não têm essa cultura da importância de fato verificar se o programa é efetivo ou não, acabam levando em consideração outras medidas: ‘ah, os alunos gostam muito’, ‘os diretores gostam muito’ e acham que isso é suficiente para manter o programa quando, na verdade, a gente sabe que esse é um dos indicadores, né? A aceitabilidade da aplicabilidade do programa, mas a questão de fato de saber se ele cumpre o objetivo que foi destinado, que no caso é prevenir o uso de drogas, é um elemento também central.
Ponte – No estudo, especificamente, vocês não analisam o currículo, mas de que forma isso influencia na efetividade ou não do programa nas escolas?
Juliana Yurgel Valente – Na verdade, a gente está agora numa segunda etapa da pesquisa, que é mais voltada para essa questão da avaliação do currículo. O novo currículo do Proerd, que é Keepin’ it Real, que é traduzido no Brasil para Caindo na Real, já vinha sendo implementado desde 2014. O objetivo foi avaliar a efetividade. Mas chegando agora a conclusão, a partir dos achados de que ele tem alguns resultados nulos, em alguns pontos até negativos, se passou para essa segunda etapa de tentar entender um pouco mais o porquê disso. É nisso que a gente está debruçada nesse momento. E o que a gente vê é que o currículo em si é feito a partir do que se tem hoje nas ciências de prevenção como realmente ajudaria a prevenir o uso de drogas, que é baseado em desenvolvimento de habilidade de vida e questões relacionadas a crenças de uso de drogas e também algumas habilidades de recusas. Essa é a teoria do programa que foi traduzido. Mas o que a gente tem visto, que já era uma hipótese em outro estudo e agora está nesses resultados preliminares também se confirmando, é a questão da necessidade da adaptação do currículo. É o que nos grita mais atenção num primeiro momento porque ele foi apenas traduzido. Então, pegou-se um currículo americano feito por uma realidade de estudantes americanos, uma realidade de estrutura de escola americana, e apenas foi traduzido para ser implementado nas escolas do Brasil, já preconizando que programas que vêm de uma outra cultura passem por esse processo de adaptação antes de serem implementados.
Ponte – O que foi mais gritante nessa diferença de realidade?
Juliana Yurgel Valente – A primeira coisa assim que nos chamou atenção é a questão, por exemplo, do currículo do 5° ano. Tem muitas atividades que são escritas, que eles têm que ler e escrever. Eles trabalham junto com o policial em aulas e ao final têm que escrever alguma coisa que eles pensaram sobre aquela atividade. Tem uma etapa que é uma redação. E o que a gente viu quando foi a aplicar o questionário de avaliação do programa é que os alunos do 5° ano não sabem ler e escrever. Muitos deles não sabem ler e escrever. Inclusive, a gente teve que adaptar o nosso questionário para um formato com áudio, num aplicativo, e com figurinhas para clicar. Essa é a primeira coisa que nos chama atenção, de que o manual é feito para ser lido e escrito, chega lá e os alunos não sabem fazer isso. É uma coisa que impacta bastante na fidelidade, como a gente diz, dentro da implementação. O instrutor acaba não conseguindo fazer como é orientado no manual, ele tem que adaptar. E essa adaptação a gente acaba não sabendo muito bem como acontece, acaba abrindo precedentes para fazer coisas que a gente não sabe se funcionam ou não funcionam.
Ponte – Vocês citam esse relato de um policial que fala sobre essa falta de estrutura.
Juliana Yurgel Valente – Exato, é isso que acontece. Acaba abrindo uma margem para essas adaptações situacionais ali. E aí isso acaba abrindo margem para algumas alterações que a gente não sabe de fato se vão impactar. Os programas são feitos para serem aplicados de uma forma, tantas vezes, e ele é considerado efetivo nesse formato. Se você sai desse formato, e cada instrutor na hora tem que fazer um formato, a gente acaba tendo nenhum controle sobre o que está impactando as pessoas e os adolescentes. Essas adaptações que acontecem na hora podem estar sendo responsáveis por esses resultados que a gente achou. São hipóteses que a gente tem levantado.
Ponte – As 30 escolas públicas que foram avaliadas, sendo que não tiveram a implementação do programa nos últimos três anos, eram escolas periféricas. Como vocês analisam esse cenário?
Juliana Yurgel Valente – Para a gente conseguir fazer esse estudo do ensaio randomizado, a gente precisava ter um grupo “controle”: escolas que não recebessem o programa para poder comparar com as que receberam. Tentando diminuir ao máximo os vieses que a gente chama de “contaminação”, ou seja, que essas escolas do grupo “controle” já tivessem algum tipo de impacto do Proerd. O Proerd está muito disseminado, principalmente na cidade de São Paulo, então é difícil encontrar escolas que não recebam o programa. Aí ficou difícil então criar esse grupo de “controle”. A gente estabeleceu um critério para tentar eliminar esse viés contaminação, ou seja, pegar escolas que já teriam aprendido digamos alguma coisa com o programa, então a gente estabeleceu um critério de um período de até três anos que não tivessem recebido o programa. Essa seleção fez com que a gente ficasse com as escolas da periferia da cidade. A gente ficou com essa amostra porque coincidentemente na periferia é onde tudo chega menos. Então chega menos o programa também. A gente tem essa limitação socioeconômica, de a gente não saber se o programa de repente funcionaria para crianças de escolas particulares.
Ponte – Vocês já avaliaram o programa “Tamo Junto”, implementado em 2013 pelo Ministério da Saúde em parceria com o escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime, que tem um objetivo parecido com o do Proerd, mas os instrutores são professores. Com essa avaliação, o currículo foi reformulado e reaplicado em 2018 após as falhas terem sido identificadas. Existe diferença de abordagem quando o instrutor é um policial ou é um professor?
Juliana Yurgel Valente – A gente não fez uma comparação sobre esses dois programas nesse estudo, mas a gente tem algumas hipóteses e está tentando investigar nessa segunda etapa. Não temos muitos estudos mostrando qual impacto disso, em termos científicos de medição. O que a gente sabe de antemão é que as crenças de cada um, da pessoa que está implementado, impacta no efeito. Isso a gente viu tanto com os professores quanto com os policiais. A gente tem tanto policiais quanto professores mais liberais, que têm um background de que acham tudo bem adolescentes usarem drogas, usarem álcool e tal, quanto mais moralistas, mas isso não é previsto no programa, vai na linha de cada um. Por mais que a gente veja o manual, como é o programa em si, quem está implementando acaba impactando. Mas ainda não temos essa resposta de professores implementando ser diferente de policiais sobre a efetividade.
Ponte – Um relato na pesquisa que me chamou a atenção é de um policial que queria mudar a visão que se tem da polícia na periferia através do Proerd.
Juliana Yurgel Valente – Existe esse desfecho do uso de drogas e violência, mas os policiais em si, pelas [19] entrevistas que foram feitas, nessa etapa do estudo que foi publicado, que eles consideram como um resultado, um desfecho interessante, a mudança da relação das crianças e da comunidade em geral com a polícia. Não é um efeito esperado do programa em si. Mas avaliam como um efeito importante, de que eles chegam na escola, existe muita resistência com a figura do policial, vivências negativas, e que, ao longo do programa conseguem reverter essa imagem. Mas a gente não avaliou isso, é uma experiência deles.
Ponte – Existe também um ponto de sobrecarga de trabalho, de que eles não são designados especificamente para isso.
Juliana Yurgel Valente – Sim. Isso aparece em parte dos relatos dos policiais, tanto nessa etapa anterior quanto agora na etapa que está em andamento, de que eles encontram a grande dificuldade dentro da própria estrutura da polícia em função de que não é valorizado esse trabalho deles nas escolas. Existem alguns comandantes, alguns coordenadores que valorizam, mas a grande maioria não valoriza esse trabalho, não consegue enxergar benefícios nesse trabalho. Eles valorizam mais o trabalho do policial na rua, combatendo o crime. Eles sofrem um certo preconceito interno por estarem fazendo esse trabalho e têm algumas dificuldades também, como de locomoção, em que eles acabam tendo que ir com veículo próprio, usando recursos próprios de gasolina.
Juliana Yurgel Valente – Sim. São eles que escolhem. Essa é uma diferença dos professores. A maioria dos professores são de alguma forma designados. E quando quando implementa o programa, os policiais fazem um treinamento específico do Proerd e começam a aplicá-lo.
Ponte – Eles já relataram o porquê escolhem ser instrutores?
Juliana Yurgel Valente – A gente não chegou a a focar nesse ponto especificamente, mas surgiram alguns discursos com coisas muito pessoais de “minha mãe era professora e eu sempre gostei de dar aula”, um outro policial que tinha feito inclusive faculdade de pedagogia e achou que era uma forma de unir os dois pontos, mas a gente não focou nessa questão da motivação deles.
Ponte – Eu já fiz Proerd em São Paulo antes dessa reestruturação do currículo de 2014 e vinham muitos exemplos que tratavam especificamente dos tipos de drogas, alguns também problemáticos e até discriminatórios, como apresentar um jovem negro oferecendo droga na porta de uma escola para um menino branco. Como deveria ocorrer essa abordagem?
Juliana Yurgel Valente – Tem essa questão, como eu disse antes, das crenças individuais que acabam impactando a implementação do programa. Hoje em dia, por exemplo, para o 5° ano não é indicado ficar falando sobre drogas, dando informações de drogas ilícitas. Não está ligado a resultados positivos fazer isso. Realmente a questão é trabalhar com habilidades de vida, fatores de risco e proteção para o envolvimento dos jovens no futuro. Mas muitos policiais ainda acham que é importante. O currículo anterior do Proerd, antes de 2014, era muito focado em conhecimento sobre drogas. Tem alguns policiais que já tinham tido experiência com esse currículo anterior e ainda acham que é importante e pegam elementos desse currículo anterior e acabam colocando nesse currículo novo por conta própria, baseados na crença deles de que é importante ainda falar sobre drogas porque essa é uma realidade muito presente na vida dos alunos de periferia, que questionam, têm curiosidade, e é importante para ele sanar essa curiosidade de falar sobre os efeitos dos inalantes, dos efeitos da maconha, dos efeitos da cocaína, enfim. O programa atual trabalha com habilidades de vida. O 5° ano trabalha com um modelo de tomadas de decisão, então sai um pouquinho do universo da droga e vai para o universo da vida porque a gente já sabe quais fatores de risco acabam levando para o envolvimento precoce com drogas, então esses currículos tentam focar nesses fatores de risco e de proteção e não na droga em si, ajudar os adolescentes a pensar um pouco melhor sobre as decisões, não tomar decisões tão impulsivas. Em relação a tudo na vida deles, não só drogas, especificamente. Isso, no futuro, entende-se que vai também se aplicar à questão da escolha ou não por usar drogas.
Também tem estratégias de resistência: se você tiver em algum lugar e oferecerem drogas, como você vai agir? Tem a questão do bullying, tem estilos de comunicação sobre como que eles podem se comunicar melhor, se eles estão falando de uma forma muito insegura, e isso vai ajudar também se eles tiverem que dizer “não” para usar drogas. Teoricamente o manual mudou bastante. Esse currículo que você está se referindo tem uma série de estudos americanos, no Brasil não tem, dizendo que o currículo é iatrogênico, ou seja, que ele faz com que piore indicativos de uso de drogas. Por isso teve essa mudança, depois de uma série de estudos mostrando que não funciona. Aí eles mudaram, tanto o Dare, que é o americano, e o Proerd mudou também para esse programa focado em habilidades e na teoria não tem esse discurso moralista nem de terror. O que a gente vê nesses resultados preliminares é que muitos instrutores ainda acham que esse currículo que você teve experiência é o mais efetivo.
Fonte: https://ponte.org/