Acusadas no Caso Evandro lançam livro relatando torturas sofridas antes da prisão: 'Ele está vivo e vai aparecer, assim como a verdade'

Acusadas no 'Caso Evandro' lançam livro relatando torturas sofridas antes da prisão — Foto: Arquivo RPC/Divulgação Em mais de 260 páginas do livro "Malleus: relatos de tortura, injustiça e erro judiciário", Celina e Beatriz Abagge, acusadas pelo desaparecimento e morte de Evandro Ramos Caetano, em Guaratuba, no litoral do Paraná, contam em detalhes as torturas que sofreram para que confessassem o crime.

"Nós temos as provas, e não querem nos absolver, querem nos condenar daquilo que não fizemos. A obra relata todo nosso sofrimento, nossa vida, tudo o que perdemos, a tristeza, o pavor que toda família passou. Para nós, ele [Evandro] está vivo, nós não matamos, e ele vai aparecer assim como a verdade. Quem armou a história sabe muito bem onde ele está", disse Celina Abagge.

O caso, que também é conhecido como "As Bruxas de Guaratuba", aconteceu em 1992, quando o garoto, na época com sete anos, desapareceu no trajeto entre a casa e a escola. Dias depois, um corpo foi encontrado em um matagal sem alguns órgãos e com mãos e pés cortados.

As autoras da obra, Celina e Beatriz, eram esposa e filha do então prefeito da cidade, Aldo Abagge - que morreu em 1995. Para a Polícia Militar, a criança foi morta em um ritual religioso encomendado pelas duas, e mais três pais de santo - Osvaldo Marcineiro, Davi dos Santos Soares e Vicente de Paula.

Os cinco chegaram a confessar o crime, mas depois alegaram que tinham sido torturados pela polícia para admitir o ritual.

O lançamento oficial da obra será no dia 7 de maio, mas a pré-venda começou na terça-feira (27). O nome do livro é uma alusão a um manual usado durante a Idade Média denominado "Malleus Maleficarum", ou Martelo das Bruxas.

"Contamos sobre como tudo ocorreu, desde a entrada dos policiais na nossa casa, quando fomos levadas ao Fórum de Guaratuba e de lá fomos sequestradas. Comecei a escrever dentro da Penitenciária Feminina e a ideia não era publicar, mas deixar tudo o que nós passamos para que meus netos lessem no futuro porque, na época, eles eram pequenos e eu não sabia se iria sair viva de lá", revelou Celina.

As partes da história contadas por ela foram todas escritas à mão, e pela filha, Beatriz, pelo computador. Posteriormente, o material foi reunido e organizado para se transformar em um livro.

"Eu no início não conseguia escrever as partes da tortura, mas depois comecei a conseguir botar para fora. A gente já havia pensando nisso [em publicar] há muito tempo, mas sempre pensávamos que seria em vão, pois muitos só jogaram pedras em nós e não acreditaram na verdade. O nosso martelo não foi da justiça, foi da inquisição", pontuou Beatriz.

De acordo com a acusação, criança foi morta em um ritual religioso. Acusados afirmam que foram torturados para confessar o crime. — Foto: Reprodução/RPC

Celina contou que sempre morou em Curitiba, mas, à época, havia se mudado para Guaratuba, após o marido se tornar prefeito da cidade.

"Ele tinha uma indústria lá e foi sempre envolvido na política, lá pelas tantas foi eleito prefeito, e foi onde aconteceu tudo. Ele era um homem bom e competente, então talvez isso tenha gerado uma inveja. Mas, é muito grande o que fizeram conosco, muito apavorante, para dizer simplesmente que foi por uma simples inveja. Até hoje não concluímos o porquê disso. Para saber mesmo teria que pegar o verdadeiro culpado, que está bem nítido e notório, só não vê quem não quer", afirmou Celina.

Julgamentos

O caso teve cinco julgamentos diferentes. Celina Abagge ficou presa por três anos e sete meses na Penitenciária Feminina do Paraná e por mais dois anos em prisão domiciliar. Já Beatriz ficou presa por cinco anos e nove meses.

Um dos tribunais do júri, realizado em 1998, foi o mais longo da história do judiciário brasileiro, com 34 dias. Na época, Beatriz e Celina foram inocentadas porque não houve a comprovação de que o corpo encontrado era do menino Evandro.

Contudo, o Ministério Público do Paraná (MP-PR) recorreu e um novo júri foi realizado em 2011. Beatriz foi condenada a 21 anos de prisão, e a mãe não foi julgada porque, como ela tinha mais de 70 anos, o crime já tinha prescrito.

Os pais de santo, Osvaldo Marcineiro, Davi dos Santos Soares e Vicente de Paula, também foram condenados, na época, pelo sequestro e homicídio do garoto.

Atualmente, Celina está com 82 anos e Beatriz 57.

Autoras Celina e Beatriz Abagge apresentam versão sobre as violências e injustiças sofridas durante todo processo — Foto: Arquivo pessoal

Investigação e descobertas

A história foi tema também do podcast "Projeto Humanos", do jornalista Ivan Mizanzuk, que ficou conhecido em todo o país. Ele conseguiu acesso aos autos do processo na Justiça. Ao todo, eram 60 volumes e mais de 20 mil páginas.

"Para mim, quando começou o podcast eu nem tinha muita força de escutar. Ouvi alguns capítulos só. Mas a gente foi adquirindo uma coragem, uma vontade de realmente publicar um livro na nossa visão, e não só de forma investigava como foi o material do Ivan. É claro que ele foi quem nos deu aquela força, aquele incentivo para isso", contou Celina.

Em março do ano passado, Mizanzuk exibiu no programa áudios das confissões feitas sob tortura que podem, segundo ele, ajudar a comprovar inocência dos suspeitos. "Se antes eu tinha dúvidas se eles eram inocentes, todas elas se foram. Estas pessoas foram torturadas e perderam anos das suas vidas", afirmou ao publicar os áudios, na época.

"Ali prova nitidamente que nós fomos obrigadas a falar o que os torturadores, policiais militares, nos obrigavam a dizer. Qualquer pessoa sob tortura confessa que matou até Jesus Cristo, porque duvido que alguém tenha tanta coragem de passar pelo que nos passamos, sendo inocentes, e tendo que falar o que a gente nem sabia que tinha acontecido direito ou que queriam que acontecesse", afirmou Celina.

Devido ao sucesso do podcast, uma série irá ao ar no mês de maio, no Globoplay. Serão oito episódios sobre as circunstâncias do desaparecimento de Evandro.

"Talvez com esse livro, com o podcast e a série da TV, o Evandro veja, se lembre de alguma coisa e queira procurar as origens dele. Torcemos de verdade que, depois de todo esse 'barulho', ele apareça vivo para nossa felicidade e da família dele também, que foi vítima de uma mentira maldosa", comentou Celina.

Programa conta a história do desaparecimento do menino Evandro, de 1992 — Foto: Reprodução/RPC

Atualmente, Celina é aposentada e vive com os filhos em Curitiba.

Beatriz trabalha em Guaratuba como terapeuta ocupacional no Centro de Atenção Psicossocial (CAPS).

"Sou funcionária pública há quase 30 anos. Voltei de Curitiba para Guaratuba e não quero ir mais embora, é cidade do meu pai amado, e eu não devo nada para ninguém. Os verdadeiros moradores daqui sabem toda a história verdadeira", contou Beatriz.

Ela se formou em Direito, passou no concurso da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), porém, a sessão paranaense da ordem negou o acesso à carteira de advogada e o exercício da profissão. Entretanto, segundo ela, o que basta é saber que apesar de tudo, a consciência está limpa.

"Na verdade o livro não é para provar a nossa inocência, eu sei quem eu sou, não sou manipulada, mas o importante desse livro é para fazer com que não aconteça com outras famílias o que aconteceu conosco, é um alerta e um desabafo", concluiu ela.
Fonte: https://g1.globo.com