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Caso Evandro: Secretaria de Justiça cria grupo de trabalho para identificar falhas no processo e investigação

Evandro Ramos Caetano, na época com seis anos, desapareceu no trajeto entre a casa e a escola, em Guaratuba — Foto: Reprodução/RPC A Secretaria de Estado de Justiça, Família e Trabalho do Paraná (Sejuf) criou um grupo de trabalho para identificar falhas no processo e investigação do desaparecimento e morte de Evandro Ramos Caetano, em 1992, em Guaratuba, no litoral do Paraná.

O "caso Evandro" ganhou repercussão nacional. À época, o menino tinha seis anos de idade. Dias após o desaparecimento, o corpo de uma criança foi encontrado sem os órgãos e com mãos e dedos dos pés cortados.

A Sejuf informou que o grupo de trabalho foi criado após a série produzida pelo GloboPlay, inspirada no podcast de Ivan Mizanzuk. Esta é a primeira série brasileira adaptada que narra em detalhes o crime.

Conforme a secretaria, o objetivo do grupo de trabalho será detectar falhas, o encaminhamento do relatório à Justiça sobre violações dos direitos humanos e supostas injustiças, além da criação de medidas para proteção das crianças.

Os trabalhos serão conduzidos pelo Departamento de Promoção e Defesa dos Direitos Fundamentais de Cidadania.

Cena da série documental 'Caso Evandro', do Globoplay. — Foto: Reprodução/Globoplay

Cena da série documental 'Caso Evandro', do Globoplay. — Foto: Reprodução/Globoplay

Desaparecimento

O menino Evandro desapareceu em 6 de abril de 1992. Ele estava com a mãe, Maria Caetano, funcionária de uma escola municipal de Guaratuba, e disse a ela que iria voltar para casa após perceber que havia esquecido o mini-game. Contudo, a espera se tornou interminável, pois ele nunca mais voltou.

A década de 90 foi marcada por uma espécie de "surto" de crianças desaparecidas na região e, com mais esse garoto sumido e depois supostamente encontrado morto, o medo se instaurou na cidade e em todo o estado.

Após um corpo ser encontrado em um matagal do dia 11 de abril de 1992, o pai de Evandro, Ademir Caetano, afirmou à época no Instituto Médico-Legal (IML) de Paranaguá ter reconhecido o filho, por meio de uma pequena marca de nascença nas costas.

O corpo foi encontrado por lenhadores que passavam pela região e perceberam a presença de urubus. Conforme informações da época, ele estava sem o couro cabeludo, olhos, pele do rosto, partes dos dedos dos pés, mãos, com o ventre aberto e sem os órgãos internos.

Próximo ao corpo, foram encontradas as chaves de casa do menino. Alguns dias depois, próximo ao local onde esse corpo foi localizado, as equipes encontraram um par de chinelos quase limpos, possivelmente do garoto. Porém, um dos chinelos foi perdido durante o colhimento das provas.

Ademir Caetano também era funcionário público da cidade, ele trabalhava na prefeitura de Guaratuba. Maria e Ademir tinham outros dois filhos, Márcio e Júnior. Evandro era o caçula.

"Eu tenho esperança que o Evandro esteja vivo e que ele tenha sido encaminhado para longe. Hoje em dia ele vai estar com mais de 30 anos, e se essa história transpor barreiras além do Brasil, essa criança vai lembrar pelo menos do nome dele, ou do pai, ou da mãe, e vai aparecer", afirmou Celina.

Investigação paralela

Na época, o grupo Tático Integrado de Grupos de Repressão Especial (Tigre) da Polícia Civil foi enviado para Guaratuba.

Um primo de Evandro, Diógenes Caetano dos Santos Filho, começou a fazer investigações paralelas. Ele havia trabalhado por um ano como policial militar e dez anos como investigador da Polícia Civil.

O pai dele, Diógenes Caetano dos Santos, foi prefeito de Guaratuba entre 1973 e 1976 e era rival político de Aldo Abagge. Durante muito tempo, Diógenes foi porta-voz da família Caetano na imprensa e era chamado como "tio" do garoto.

Diógenes Caetano dos Santos Filho — Foto: Reprodução/RPC

Dois meses depois do crime, Diógenes Caetano apresentou ao Ministério Público do Paraná (MP-PR) o dossiê de "magia negra", acusando, entre outros, o pai de santo Osvaldo Marcineiro e a então primeira dama Celina Abagge.

"O que gerou tudo isso foi Diógenes. Foi ele que veio com a história de que nós matamos a criança. Ele levou aquela ideia dele para o MP, que acatou e já mandou a polícia deles, a P2, para resolver o caso porque eles achavam que o Grupo Tigre tinha sido comprado pela família. Nós sempre achamos que eles fossem achar a criança viva, e o Grupo Tigre também. Mas, o Diógenes já nos primeiros dias foi na minha casa dizendo que a criança tinha morrido, que a gente tinha matado, tirado os órgãos, feito tráfico de órgãos", relembrou Celina.

À época, acreditava-se que o ritual tinha sido feito com o objetivo "abrir os caminhos" da fortuna e da política para a família Abagge.

Sete acusados

A Polícia Militar (PM) entrou no caso com a Ação de Grupo Unido de Inteligência e Ataque, chamado Grupo Águia, ou P2. Em um mês de investigações, eles apontaram sete culpados:

  • Celina Abagge, então primeira dama do município;
  • Beatriz Abagge, filha do prefeito;
  • Osvaldo Marcineiro, jogador de búzios,pai de santo;
  • Vicente de Paula Ferreira, colega/ajudante de Marcineiro;
  • Davi dos Santos Soares, artesão de Guaratuba;
  • Francisco Sergio Cristofolini, vizinho e dono do imóvel onde Marcineiro morava;
  • Airton Bardelli, funcionário da serraria da família Abagge.

Os sete acusados do Caso Evandro — Foto: Reprodução/Globoplay

Cinco deles confessaram o crime - Beatriz, Celina, Osvaldo, Vicente e Davi - alguns em fitas de áudio, outros em vídeo. Essas fitas, editadas, embasaram o processo do caso.

Celina contou que a palavra dela, da filha e dos outros acusados não importava para as autoridades e que chegou a um ponto que não adiantava mais tentar se defender, apenas obedeciam ordens.

"Não adiantava querer correr, eles invadiram a minha casa, quebraram tudo, arrebentaram tudo. A mesa posta para o café e meu marido pediu 'cadê o mandado?', mas não tinha. Foi uma invasão de policiais [do Grupo Águia] na nossa casa para nos prender. Eu fui bem tranquila para o fórum. Chegando lá, esperamos, não apareceu juiz, de repente abre a porta, me puxaram pelo braço. Eu pensei que nós íamos na sala da juíza. Mas não, tinha um carro ali e dali nós fomos sequestradas. Na esquina do fórum havia esse cidadão Diógenes dando gargalhada. Eu olhei para ele e me deu um calafrio", disse ela.

Osvaldo Marcineiro e Davi dos Santos foram presos em 1º de julho de 1992. Celina, Beatriz e Vicente de Paula, no dia seguinte. Francisco Sérgio Cristofolini e Airton Bardelli, que sempre negaram estarem envolvidos, foram presos no dia 3 de julho.

Quem determinou as prisões foi a então juíza de Guaratuba, Anésia Edith Kowalski, e quem realizou essas prisões não foi o Grupo Tigre, responsável pelo caso, e sim o Grupo Águia - comandado pelo então capitão da PM, Valdir Copetti Neves.

A casa da família do prefeito Aldo Abagge chegou a ser apedrejada pela população, que estava revoltada com a confissão do crime bárbaro. A imprensa de todo o país acompanhava cada etapa nova sobre o caso.

Em busca de provas, a polícia esteve na serraria da família Abagge, local do suposto ritual, levou um pedaço da parede, objetos que estavam em um tipo de "capelinha" e foi atrás de outras pessoas que frequentaram o terreiro do pai de santo.

Confissões sob tortura

Tempo depois houve uma reviravolta na história, quando os acusados alegaram que tinham sido torturados pela Polícia Militar para confessar o ritual contra o menino Evandro. Beatriz e Celina contaram que foram levadas, encapuzadas, de carro para uma casa.

Celina disse que conhecia a região e, mesmo com um pano na cabeça, percebia que primeiro percorreu o trajeto em asfalto e depois por uma estrada de chão. Ao parar o carro, pode ver brevemente que o destino se tratava de uma casa de madeira, localizada em uma chácara.

"Dali, é difícil. É a pior parte. (...) Nós saímos do fórum antes das 9h, e nós voltamos para o fórum depois das 16h. Só sei porque ouvi o policial comentando 'ah, pé na tábua porque já são quatro horas'. Foi o pior momento", disse Celina.

Ela contou que elas foram obrigadas a falar o que os policiais mandavam, caso contrário eram ameaçadas, violentadas e torturadas.

"Até pedi para os policiais 'me matem, façam o que vocês quiserem comigo, eu digo o que vocês quiserem, mas soltem a minha filha, levem a minha filha de volta'. Mas não teve acerto. Então você está escutando a sua filha sendo torturada e, pelos gritos e pela situação, estuprada. Nove policiais em cima dela. Você diria que matou Jesus Cristo, você fala tudo o que eles mandam. Nós nunca confessamos nada, nós repetimos o que os 'policiais' falavam", relembrou Celina.

A filha do prefeito da época, Beatriz, lembrou que em um determinado momento no local onde foi torturada, os policias mandaram ela tomar banho. No intuito de provar que havia estado ali, pensando que o caso seria investigado, ela deixou uma calcinha no banheiro.

"Eu tenho flashes, eu não lembro da minha tortura inteira. Eu tentava em todo o momento dizer que eu não era culpada, que eu estava inventando aquilo. Eu não sabia para onde que eu ia, não sabia se eles iam matar a gente, se ia voltar para o fórum. Foi o dia todo que nós fomos torturadas, eu e minha mãe. O Osvaldo e o Davi foram muito mais do que 48 horas, porque eles foram presos antes. O de paula foi preso conosco então também foi 24 horas", contou ela.

Osvaldo Marceneiro e Davi dos Santos descrevem ter sido torturados na casa de veraneio do ditador paraguaio Alfredo Stroessner. Os dois também disseram em depoimentos que uma mulher acompanhou alguns rituais de tortura. Eles apontavam que era a juíza Anésia Edith Kowalski.

Caso Evandro: Eles chegaram a confessar o crime, mas depois alegaram que tinham sido torturados pela polícia para admitir o ritual — Foto: Reprodução/Globoplay

Beatriz contou que se ela errasse o nome da pessoa ou a forma como eles queriam que ela falasse, recebia choque elétrico.

"Depois que eu era torturada, eu ia falar as coisas e falava 'mas eu não sei o que vocês querem que eu fale'. Eles falavam assim 'diga que você matou a criança' e eu falei 'tá'. Eu dizia o 'tá' antes para perceberem que eu estava inventando aquilo. 'Tá, eu matei a criança'. Eu não sabia nem que criança eles queriam que eu dissesse".

Ela disse que em alguns momentos, errava de propósito as frases que os policiais mandavam ela falar, pensando que alguém algum dia iria checar esse material e ver que elas foram forçadas a dizer aquilo. Contudo, essas fitas "sumiram" e nada aconteceu em relação a elas na época.

Ela conta, ainda, que antes de sair desse local deram para ela tomar um copo com um líquido amargo.

"Foi ingenuidade, porque ninguém tomou conhecimento. No dia em que eu prestei depoimento em Matinhos, o secretário de Segurança Moacir Favetti falou 'deveriam ter torturado mais essa cadela que agora está contando tudo'. Ele também mandou soltar a gente em praça pública, se a justiça desse habeas corpus", contou Beatriz.

Celina e Beatriz Abagge, esposa e filha do então prefeito da cidade, Aldo Abagge — Foto: Reprodução/RPC

Celina recordou que após sofrerem as torturas, mesmo com os machucados, marcas, com sinais claros de violência sofrida, nenhum órgão mudou a postura em relação aos acusados.

"Quando eu saí do fórum com a minha filha, porque fomos sequestradas, levadas para a casa de tortura e de volta, eu estava urinada e evacuada. A Beatriz estava com o olho bem tinto, um corte. Eu não conseguia andar. A justiça não apareceu. Apareceu um cidadão levando um papel para assinar que eu nem enxergava. Estava completamente zonza, destruída, com a Beatriz ali do lado. Eu assinei porque ela disse 'assina, não adianta mais nada. A gente imaginava que ia ser morta".

No final de julho de 1992, durante audiência com a juíza Anésia Edith Kowalski, os sete passaram a negar as participações e afirmarem que estavam sendo coagidos.

'Vozes silenciadas'

As duas lembram que mesmo concedendo entrevistas diversas vezes, a vários veículos, ou falando a versão delas para outras pessoas, ninguém acreditava. As falas eram cortadas e, às vezes, nem colocadas nos materiais. Termos como "bruxarias" e "satanismo" eram costumeiramente utilizados para tratar sobre o suposto crime.

"As nossas vozes tinham de ser silenciadas porque qualquer coisa que a gente falava contundente a nosso favor era cortado a mando de forças ocultas. Desde o início nós falamos da tortura, mas os delegados não davam bola, não anotaram. Nós falamos 'nós apanhamos', 'nós fomos violentadas', e eles riam", lembrou Celina.

Jornal da época manchetando o Caso Evandro, em Guaratuba — Foto: Reprodução/RPC

Ela também pontuou que sempre existiram as provas da tortura dos acusados, porém tudo foi escondido para prejudicá-los, pois era necessário encontrar culpados na história. Celina relembra, por exemplo, como foi feito um exame de lesões corporais nela, na época, pelo Dr. Raul de Moura Rezende.

"Provas existiam, só que foram escondidas, né? Exame do IML nós não fizemos, quando eu entrei para fazer o exame, eu estava com três torturadores. Se eu falasse qualquer coisa, eu apanhava ali mesmo. O médico ficou a um metro de mim, e eu ainda tive a coragem de mostrar um corte grande no pescoço, mas já levei um apertão de um torturador. O médico, então, colocou 'leves escoriações no pescoço'. A gente foi violentada e nem a blusa eu tirei. Que exame foi esse?", pontuou Celina.

Julgamentos e condenações

O caso teve cinco julgamentos diferentes. Celina e Beatriz Abagge ficaram presas por três anos e nove meses na Penitenciária Feminina do Paraná e por mais dois anos em prisão domiciliar.

Um dos tribunais do júri, realizado em 1998, foi o mais longo da história do judiciário brasileiro, com 34 dias.

A principal testemunha de acusação, Edésio da Silva, que dizia ter visto Evandro dentro do carro com os acusados no dia do desaparecimento dele, acabou se contradizendo.

O perito, Dr. Raul de Moura Rezende, que tinha feito o exame que não apontou tortura após as prisões, se suicidou no dia que iria prestar depoimento. E as fitas da confissão tiveram trechos editados.

Ao final, na época, Beatriz e Celina foram inocentadas porque não houve a comprovação de que o corpo encontrado era do menino Evandro. Conforme as investigações, o corpo encontrado era maior do que o do garoto.

Celina e Beatriz Abagge, esposa e filha do então prefeito da cidade, Aldo Abagge — Foto: Reprodução/RPC

Entretanto, o MP conseguiu a anulação do júri, alegando que os jurados não podiam ter deixado de considerar que um exame de DNA apontava que o corpo era de Evandro. Com isso, novos julgamentos ocorreram.

Em 2004, Osvaldo Marcineiro, Davi dos Santos e Vicente de Paula foram condenados pelo homicídio e voltaram para a prisão.

Osvaldo Marcineiro, Davi dos Santos e Vicente de Paula foram condenados pelo homicídio — Foto: Reprodução/RPC

Airton Bardelli e Francisco Sergio Cristofolini, que nunca admitiram participação no crime, foram absolvidos em 2005.

Em 2011, um novo júri foi realizado, em que Beatriz foi condenada a 21 anos de prisão, e a mãe não foi julgada porque, como ela tinha mais de 70 anos, o crime já tinha prescrito.

"O porquê fizeram tudo isso com a gente, eu não tenho ideia. Nós tivemos diversas linhas de pensamento, mas não chegamos a uma conclusão. É muito barbarismo para cravar que 'ah, foi por causa de política", disse Celina.

Como Beatriz já havia cumprido quase seis anos de prisão, ela recorreu em liberdade. Em 2016, o Supremo Tribunal Federal (STF) determinou que condenados em segunda instância podiam ser presos. Beatriz, então, pediu um indulto e conseguiu.

Vicente de Paula morreu por complicações de um câncer em 2011 no presídio onde estava. As penas de Osvaldo Marcineiro e Davi dos Santos se extinguiram pelo cumprimento.

Descobertas das fitas originais

A história foi tema do podcast "Projeto Humanos", do jornalista, professor e escritor de Curitiba, Ivan Mizanzuk, que ficou conhecido em todo o país. Ele conseguiu acesso aos autos do processo na Justiça. Ao todo, eram 60 volumes e mais de 20 mil páginas.

"O caso de Guaratuba me chamou atenção porque era um caso que me assombrou quando criança, e eu queria fazer uma investigação criminal, para contar um documentário, eu não imaginava que iria chegar tão longe, eu só queira contar a história e acabaram aparecendo coisas novas".

Em março do ano passado, Mizanzuk exibiu no programa áudios das confissões, sem edições, feitas sob tortura que podem, segundo ele, ajudar a comprovar inocência dos suspeitos.

O jornalista contou que as fitas, obtidas com uma fonte que não quis se identificar, não foram anexadas ao processo porque mostram que os acusados estariam inventando a confissão.

Em um dos áudios, por exemplo, Osvaldo Marcineiro aparece ofegante e, em alguns momentos, grita de dor.

Em outros momentos, o pai de santo diz: "Deixa eu sentar um pouco, por favor, deixa eu respirar um pouco, eu volto a falar"; "Não, não faz isso, por favor. Eu estou falando tudo. Amigo, eu estou cooperando".

"Eu fui para os bastidores, conversei com uma pessoa ou outra e comecei a seguir um caminho, e quando eu sigo este caminho eu encontro uma pessoa que não tinha noção do que havia naquelas fitas, ela me dá um saco de várias fitas e me diz: 'dá uma olhada aí'. Eu ouvi e encontrei lá tudo isso, então, por muito pouco estas fitas não se perderam e iam um dia acabar no lixo", disse ele.

Em outra fita, durante o "interrogatório" de Vicente de Paula, é possível ouvir que um dos policiais em um momento fala: "'entroxa' a cabeça desse cara para baixo, 'entroxa' a cabeça".

Mizanzuk exibiu no programa áudios das confissões feitas sob tortura — Foto: Reprodução/Globoplay

Em outro áudio, Beatriz é ameaçada pelos interrogadores. Em um dos cortes, é possível ouvir um grito de socorro.

Em outro ela diz: "Ai, meu Deus, isso não é verdade! Eu estou inventando isso". O interrogador, então, fala: "Não! Que que está inventando?". E ela responde: "Não, nada! Nada, eu estou falando sozinha".

Depois de um tempo, de outras respostas, o interrogador diz: "Olha, menina, acho que nós vamos ter que continuar na nossa sessão. Você não está querendo falar, né?". E Beatriz responde: "Não, eu estou falando, estou falando!".

"Eu gostaria de falar que nós tivemos aquela surpresa da fita. A gente já conhecia, a gente sabia que era a gente, mas eu fiquei totalmente transtornada. Graças a Deus apareceu. E quando o promotor escuta aquela fita, ele diz 'é um prato cheio para a defesa', não é um prato cheio, é um tacho cheio de injustiça, é um tacho cheio de dor, é um tacho cheio de tortura. Eu espero que a justiça seja feita, legalmente", afirmou Celina.

O podcast sobre o caso tem 36 episódios e mais de 40 horas. Já foram mais de 9 milhões de downloads.

Mizanzuk pontuou que, de acordo com as pesquisas e investigações, todos os réus sempre se basearam em quatro argumentos: Diógenes denunciou as Abagge por vingança e também tinha interesses políticos; as prisões do Grupo Águia foram feitas de modo ilegal; as confissões gravadas foram obtidas sob tortura; e o corpo encontrado não era de Evandro.

"Poderia ter tido mais rigor nas apurações? Poderia. Eu quero acreditar que se fosse hoje a polícia entregando uma fita igual aquela que foi apresentada para a imprensa pelo secretário de Segurança Pública, alguém dissesse: 'espera aí, isso está estranho né?', a gente não precisaria estar debatendo sobre tortura ou não. Não deveria ter que eu aparecer, quase 30 anos depois, descobrindo versões não editadas para mostrar", disse Mizanzuk.

Série documental

Devido ao sucesso do podcast, uma série documental sobre o caso foi produzida e lançada no GloboPlay.

O farto material de arquivo de emissoras de TV, rádio e de páginas de jornais da época ajudou a montar o quebra-cabeças que envolve o assassinato. Na série, Ivan Mizanzuk é o fio condutor da narrativa.

Foram quase dois anos de trabalho entre roteiro, filmagem, montagem e organização do material. A série tem oito episódios, que foram dirigidos por Aly Muritiba e Michelle Chevrand.

Série documental sobre o caso foi produzida e lançada no GloboPlay — Foto: Reprodução/Globoplay

Visões sobre o caso

O delegado Luiz Carlos de Oliveira, que investigou o desaparecimento do outro menino em Guaratuba, Leandro Bossi, aponta várias falhas. Segundo ele, quando entrou para investigar esse caso, não poderia deixar de investigar também o caso Evandro, porque eram dois meninos desaparecidos, com características semelhantes.

"Guaratuba não é um lugar que brota criança do chão, ou que morre criança desta maneria, como foi colocado. Nesta oportunidade, houve dificuldade muito grande de investigação, e atrapalharam muito nosso trabalho. Erraram por vaidade. Erraram por querer dar uma satisfação para a sociedade, deixando de lado o fato investigativo e querendo aparição de culpados. Não tem conserto, o que você pode falar para sete pessoas que foram acusadas injustamente? Quanto vale o que estas pessoas passaram? Não tem preço, não tem reparação", revelou ele.

O advogado Antônio Augusto de Figueiredo Basto, que defende Beatriz e Celina Abagge, afirmouque irá pedir uma revisão criminal do processo sobre o caso no Tribunal de Justiça do Estado do Paraná (TJ-PR) e também vai pedir na Corte Interamericana de Direitos Humanos a condenação do Estado por ato de tortura das autoridades contra os acusados.

"Eu acho que na época queria se encontrar um culpado. E para se encontrar um culpado foi feito de uma forma atabalhoada, violenta e incompetente. Eles preferiram a tortura do que investigar e deixar o verdadeiro culpado que quiçá está até solto, gozando da impunidade. Até hoje ninguém disse como é que o Osvaldo foi preso de madrugada e onde ele ficou, das 20h até às 7h, onde a Beatriz e a dona Celina foram levadas".

Basto ainda disse que a revisão criminal servirá também para buscar uma indenização para as famílias envolvidas.

"É importante que essa indenização seja paga, eu acho que o dinheiro não traz o tempo que passou, mas pelo menos é uma forma de reparar a essas famílias o sofrimento intenso que elas tiveram. O Estado, por seus entes e agentes, é o culpado por esse fato e, mais do que isso, é culpado por iludir as famílias desses meninos de Guaratuba", concluiu o advogado.

Beatriz Abagge afirma querer o status de inocente dos sete acusados. Neste mês de junho, Beatriz conseguiu na Justiça a reabilitação - extinção da ficha criminal dela.

"Dinheiro nenhum vai trazer meu pai de volta, as pessoas de volta, a família do Bardelli, do Osvaldo, do de Paula que morreu na cadeia. A gente quer o status de inocente e que seja reconhecido isso publicamente, nem que demore, não importa, a gente espera. Já esperei por isso por 30 anos. Eu acho que as pessoas devem responder por isso, mas no devido processo legal. Não com linchamento moral, midiático, de internet. Isso não adianta. Sinto pelo que a família do Evandro passou, mas o que eles acreditaram até hoje é mentira", comentou ela.

Atualmente, Beatriz está com 57 anos e trabalha em Guaratuba como terapeuta ocupacional no Centro de Atenção Psicossocial (CAPS). Ela se formou em Direito, passou no concurso da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), porém, a sessão paranaense da ordem negou o acesso à carteira de advogada e o exercício da profissão.

Celina Abagge disse que além de querer um retratamento em público da Justiça, do MP, ela gostaria que houvesse a justiça completa, que as pessoas verdadeiramente culpadas pagassem pelo crime cometido.

"Onde fica a justiça? Tortura não é crime? Sequestro não é crime? A nossa vida, o nosso nome, o tempo que nós passamos para podermos provar a nossa inocência, isso não interessa? Já passou, prescreveu? O coração não aceita isso. Eu quero que seja declarada a nossa inocência e justiça para os causadores do fato".

Atualmente, Celina está com 82 anos, aposentada, e vive com os filhos em Curitiba. Ela e filha Beatriz escreveram um livro sobre o caso "Malleus: relatos de tortura, injustiça e erro judiciário", em que contam em detalhes as torturas que sofreram para que confessassem o crime.

O governador do Paraná na época do caso, Roberto Requião, comentou sobre a história e respondeu se sabia dos rumos das investigações.

"A polícia do Paraná, e a do Brasil, ela trabalha com secretarias delegadas. Você delega poderes. É evidente que um governador de estado não sabe o que está acontecendo em centenas de investigações policiais que ocorrem no âmbito da sua jurisdição", afirmou.

Requião foi quem extinguiu o Grupo Águia, mais de dez anos depois do caso, quando voltou a ser governador do estado.

"No meu segundo mandato quando chegaram informações sobre como se comportava aquele Grupo Águia, que eu nem sabia que tinha participado dessa questão de Guaratuba, eu simplesmente determinei a sua dissolução. Eu acho que era realmente um esquema de bruxaria, de coisas satânicas absolutamente inadmissíveis no nível da sociedade que nós vivemos. As moças foram torturadas, mas isso não significa que elas não tenham, apesar da tortura, responsabilidade no processo".

O menino Evandro desapareceu em 6 de abril de 1992 — Foto: Reprodução/RPC

O promotor do MP-PR, Paulo Sérgio Markowicz de Lima, disse que ao tomar conhecimento das fitas originais, avisou o promotor de Guaratuba, mas o inquérito que investigou a tortura já havia sido arquivado e não será reaberto.

"Ouvir as fitas, eu posso dizer que foi impactante, uma experiência terrível. Foi a experiência pior da minha vida, em termos sentimentais. O fato dessas fitas aparecerem só agora é um grave crime em todos os vieses. Um crime de pegar o MP e não ter acesso a essas fitas. Um crime para a própria família de Evandro. Mas, há outras provas, tanto circunstanciais, periciais, testemunhais, que indicam a responsabilidade dos acusados".

O jornalista Ivan Mizanzuk, do podcast "Projeto Humanos", revelou que não descarta a hipótese de que na cidade naquela época existia um assassino em série, que talvez fosse o verdadeiro culpado dos crimes.

"Eu tenho esta hipótese de que em Guaratuba havia um serial killer, um maníaco, que ele tinha um modus operandi de atrair crianças de alguma maneira. Talvez ele usasse crianças para atrair outras, um cara barbudo, provavelmente caçador, de 25, 30 anos, que sabia cortar animais, tirar vísceras, e sabia que se fizesse isso, o processo de esqueletização era mais rápido".

Ademir e Maria Caetano, pais de Evandro, não falam com a imprensa desde 2011. Eles afirmam não querer mais comentar sobre o assunto.

O primo de Evandro, Diógenes Caetano dos Santos Filho, atualmente atua como engenheiro civil em Guaratuba. Ele preferiu não se manifestar, apenas entregou um livro que escreveu sobre o caso.

A reportagem pediu um posicionamento da Polícia Militar sobre as torturas mostradas nas fitas, se haveria algum tipo de investigação. Em nota, a PM disse que não vai se manifestar sobre um caso solucionado pela Justiça.

Fonte: https://g1.globo.com/pr

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