Na Fundação Casa, jovem acha irmão e revê o pai que pensava estar morto

Equipe descobriu laço familiar a partir das histórias contadas pelos internos.
Em liberdade, jovens dizem que apoio é fundamental para reconstruir a vida.

jovem acha irmao"Todo acontecimento que parece ser ruim, no fundo traz coisas boas para a gente". A afirmação de Rafael*, de 18 anos, resume em poucas palavras a transformação que viveu no último ano. Após ser apreendido por roubo, o jovem foi internado na Fundação Casa e, dentro da instituição, descobriu um irmão e reencontrou o pai que acreditava estar morto.

O elo familiar foi descoberto pela equipe multiprofissional que atende os adolescentes, após identificar semelhanças no que Rafael e o irmão, Felipe*, de 17 anos, contavam sobre as respectivas famílias, que moram em Ribeirão Preto (SP).

Mas, a certeza sobre o parentesco ocorreu a partir da história do pai e do relato dele sobre a trágica morte da ex-companheira, mãe de Rafael. Usuária de drogas, a mulher morreu há três anos devido a um acerto de contas.

Após a morte da mãe, Rafael e a irmã passaram a morar com a avó materna e os tios. O jovem diz que, apesar do apoio da família e dos conselhos que recebia do tio, acabou se envolvendo em um assalto em junho do ano passado e foi detido.

"Minha mente era bagunçada. Depois que minha mãe morreu, todo mundo achou que eu não teria futuro. Eu ficava pensando em como era triste não ter mãe e nem pai. Agora, essa descoberta mexeu muito comigo. Com meu pai do meu lado, me apoiando, sei que posso ir longe", afirma o jovem, que já está em liberdade.

Histórico familiar
Pai de Rafael e Felipe, o vigilante Fernando Taschetti, de 44 anos, conta que se envolveu com as mães dos jovens na mesma época, e que ambas sabiam do triângulo amoroso, mas não se importavam. Certo dia, porém, a ex-companheira decidiu terminar a relação e levou Rafael consigo.

"Eu ficava com uma e com a outra, levava a minha vida embolada, usava drogas, bebia, não estava nem aí para nada. Eu aprontei muito e só hoje entendo que não se brinca com os sentimentos das pessoas", afirma.

Após ser abandonado pela mãe de Rafael, o vigilante passou a morar com a mãe de Felipe, mas o envolvimento dele com as drogas ficou mais intenso. A mulher e o filho também se afastaram, e foram morar com a sogra. O vigilante até tentou se reconciliar com a família, mas não conseguiu.

"Eu sofri tanto, perdi meu tempo, virei mendigo, ficava na escadaria da catedral e via a minha mãe passar, mas ela não me reconhecia. Eu era barbudo, ficava todo sujo, às vezes quatro, cinco meses sem banho. Eu me cobria com o cobertor e ficava chorando, porque tinha vergonha", relembra.

A mudança de vida ocorreu quando Taschetti conheceu a atual mulher, que trabalhava como vendedora no Centro da cidade. Ela lhe ofereceu alimentos, roupas novas, e, aos poucos, o ajudou a sair daquela condição. Foi a mulher, inclusive, que incentivou o vigilante a se reaproximar dos filhos.

"Eu sabia mais ou menos onde os meninos moravam, mas tinha medo da reação deles ao me encontrarem. Acabei descobrindo que a mãe do Rafael havia morrido de uma forma bem trágica e que ele estava morando com os tios. Não tinha coragem de procurar por eles", diz.

Reencontro
Em uma tarde de domingo, após participar de um culto evangélico na igreja que a família frequenta, Taschetti se encheu de coragem e foi em busca do outro filho, Felipe. Ele soube que a ex-mulher também havia morrido e que o jovem estava sob os cuidados de uma tia, mas tinha se envolvido com o tráfico de drogas.

"Quando a gente se reencontrou, ele nem sabia quem eu era. Depois que me apresentei, ele desmontou no chão, começou a chorar, dizia que estava todo sujo, não queria me abraçar. Eu o abracei com força e disse que o amava muito. Conversamos um pouco e percebi que ele estava drogado", afirma.

O vigilante levou o filho para casa e passou a cuidar dele. Mas, apesar dos esforços, Felipe voltou a se envolver com o tráfico e ainda participou de dois assaltos. Na última vez, em fevereiro do ano passado, acabou apreendido junto com os demais suspeitos.

Taschetti continuou ao lado de Felipe e o visitava toda semana na Fundação Casa. Em um desses encontros, o vigilante foi chamado para uma conversa com a assistente social Letícia Leal Barros e, durante uma longa tarde, contou a ela toda a sua trajetória de vida.

Além do apoio do pai, Felipe também recebia o acompanhamento da equipe multiprofissional, que o incentivava a estudar e recuperar o atraso escolar. Mas, a história do jovem teria uma reviravolta ainda maior quatro meses depois, com a chegada de Rafael à mesma instituição.

Durante uma consulta com a psicóloga Simone Sanchez Gonzales, Rafael contou sobre o envolvimento com o crime e a perda precoce da mãe. Até então, o jovem nem imaginava a existência do irmão.

A revelação e o encontro entre os dois só ocorreu depois que a psicóloga e a assistente social, em uma conversa informal, perceberam semelhanças nas histórias dos irmãos. A certeza do laço familiar ficou mais evidente ao cruzar os relatos de Taschetti - sobre a morte da ex-companheira - e de Rafael - sobre a perda da mãe.

"Eu fiquei feliz de encontrar meu irmão. Meu pai falava que eu tinha outro irmão, mas ainda não conhecia. Então, foi muito legal poder ver ele. Só não imaginava que fosse assim, do jeito que aconteceu", diz Felipe.

Surpresa maior teve Taschetti, que recebeu a notícia em um domingo, quando estava na Fundação Casa para visitar Felipe. O vigilante relembra que resistiu ao convite da assistente social para conversar com Rafael, que não via há mais de dez anos.

"Fiquei muito emocionado. Demorei para chegar perto e quando disse que era o pai dele, a gente se abraçou e chorou muito. Eu disse que fui um pai canalha, não fui um pai de verdade e pedi perdão por tudo o que fiz. Eu precisava dizer aquilo e ouvir o perdão dele", afirma.

Nova família
Juntos, o vigilante e os filhos reconstroem a família, tentando esquecer o passado que causou tanto sofrimento a eles. Taschetti, principalmente, diz que tem se esforçado para ser um pai presente na vida dos jovens, assim como é para os outros cinco filhos.

"Eu quero ser o que nunca fui para os meninos. Quero que conheçam o outro lado do pai deles. Não aquele que viveu nas ruas, se envolveu com drogas, mas o homem que se converteu, que vive dentro das leis de Deus. Hoje, posso dizer que tenho uma família de verdade", diz.

Rafael e Felipe conseguiram a liberdade no início deste ano. Felipe mora com o pai e a madrasta em Ribeirão, e está em busca de um emprego. O jovem também continua estudando, uma das principais cobranças do pai.

"Eu quero mudar de vida. Meu pai me dava conselho, mas eu não ouvia, era muito cabeça dura. Ele me acolheu de braços abertos e a mulher dele também, como se fosse uma mãe mesmo. Tanto é que hoje eu já chamo ela (sic) de mãe", diz o irmão mais novo.

Rafael mora com os tios e a avó materna, mas sempre que consegue visita o pai e o irmão. O jovem estuda para ser aprovado na faculdade de engenharia civil, um sonho de infância que foi incentivado pelo avô.

"Hoje, eu escuto muito o meu pai. Essa mudança toda me fez refletir muito. Descobrir que meu pai está vivo é muito motivador. Eu não quero mais pensar coisas ruins, como eu pensava antigamente, quero ter uma vida melhor", conclui.

*Os nomes da reportagem foram modificados para preservar a identidade dos entrevistados.

FONTE: g1