O ano de 2025 está chegando ao fim e, ao fazer uma retrospectiva sobre as obras audiovisuais que conquistaram o público, é difícil não citar filmes, séries e documentários de um gênero que definitivamente caiu no gosto do brasileiro: o true crime (crimes reais, em uma tradução livre).
A paixão do público por esse tipo de narrativa não é novidade para Stefanie Zorub — jornalista, roteirista, produtora de cinema e podcaster —, a ‘Dona Café’ do podcast Café com Crime. Criado em 2018, o programa, pioneiro entre os podcasts focados em crimes brasileiros, já mergulhou em mais de 180 casos para contar histórias verdadeiras que chocam, seja pela crueldade dos assassinos ou pela vulnerabilidade das vítimas. Em 2025, a comunidade de ‘crimizeiros’, como Stefanie chama os aficionados, atingiu números nada modestos, como 10 milhões de reproduções durante o ano, segundo a retrospectiva do Spotify, compartilhada com os mais de 246 mil seguidores do Café com Crime no Instagram.
Uma legião de ouvintes, que exige responsabilidade. Em entrevista ao R7, Stefanie fala sobre a importância de se aprofundar em cada caso, entendendo todo o contexto que permeia um crime, e de ter em mente que até mesmo os familiares de uma vítima ou de um criminoso podem estar ouvindo aquele programa: “Eu gosto de ter muito cuidado e muita responsabilidade com o que eu falo, porque eu sei que as pessoas podem estar escutando”.
Stefanie também fala sobre um efeito colateral da paixão do público por casos reais: a espetacularização de criminosos. Uma vez que assassinos cruéis (e reais) são protagonistas dessas histórias, uma fronteira importante pode ser atravessada. Para a podcaster, a romantização dessas pessoas pode ter consequências ruins para a sociedade. De uma coisa ela tem certeza: não quer fazer parte disso.
Veja a entrevista na íntegra:
R7 – Como surgiu a ideia do podcast e como foi a sua trajetória até os dias atuais?
Stefanie Z. – Sempre gostei de ler sobre detetives, obras da Agatha Christie, ou narrativas relacionadas a mistério, sabe? Esse universo na ficção sempre me prendeu muito. E quando eu fui ficando mais velha, quando morei nos Estados Unidos, por volta de 2015, teve esse “boom” de true crime.
Foi quando eu passei a escutar muito podcast desse tema, e nossa, para mim foi muito interessante porque aquilo que eu via na ficção acontecia de verdade.
Quando me mudei de volta para o Brasil, fiquei muito curiosa de saber como que funcionavam as investigações aqui, quais que eram os crimes que aconteciam aqui; então comecei a pesquisar, né?
Como sou jornalista e roteirista, sempre gostei muito de escrever; quando comecei pesquisar e escrever sobre esses crimes, eu não tava pensando: “Nossa, vou criar um programa”, na verdade, eu estava buscando satisfazer a minha própria curiosidade.

A trajetória do podcast mudou muito, desde do primeiro episódio até o último. Se você escuta o primeiro episódio e escuta o último, parece que é outro programa que tá escutando. No começo, veio muito uma curiosidade, e eu até tinha um tom mais leve, tipo você tá contando a história, fazendo uma piadinha aqui, uma coisa ali. Mas hoje eu não consigo mais, porque é uma coisa tão mais profunda. Gerou em mim um senso de responsabilidade muito grande ao contar essas histórias, que eu tive que mudar o jeito que eu abordo, né?
Quanto mais eu me envolvia com as histórias, mais eu descobria o que é o nosso sistema de justiça, o que é uma investigação no Brasil, pelo que as famílias passam — tanto a família da vítima como a família do assassino —, e com isso você vai criando uma empatia, uma reflexão sobre a nossa sociedade.
Não dava para continuar a mesma coisa e eu acho que faz parte, faz parte da gente evoluir, faz parte da gente aprender com todo o processo.
R7 – Como é o processo de seleção dos casos que você narra em seu podcast?
Stefanie Z. – Eu amo o assunto true crime, sempre gostei e eu sigo muito o meu instinto na hora de escolher um caso. Se eu tô lendo um caso e ele mexeu comigo, me despertou emoções, me deixou curiosa, eu não consigo parar de abrir outra aba para procurar sobre mais coisa, esse é o caso.
Quando escolho o caso, eu tenho uma pessoa, que ela é jornalista também, e me ajuda com essa parte de pesquisa. A gente procura sempre trazer coisas de fontes oficiais e como não tem muito na internet, eu fui buscando nos jornais antigos e em coisas antigas assim, aí eu fui falando: “Gente do céu, existe um universo com várias vítimas que ainda está encoberto, onde há pessoas que nunca tiveram voz, que nunca tiveram atenção”.
A gente sempre tenta chegar o mais perto possível das fontes e da verdade que vai vir dessa fonte, mas sempre lembrando de procurar se aprofundar nos detalhes da vida dos dois lados.
R7 – Havia algum preconceito contra seu podcast por abordar o tema true crime?
Stefanie Z. – No começo tinha muito esse julgamento, né? Nossa, você fala de crime, você gosta de crime, que horror, que macabro. Tipo, nossa, você deve ser uma pessoa mega estranha. Eu não tinha com quem falar sobre essa minha curiosidade de crime, então comecei a falar com a internet.
Com isso, eu coloquei o bordãozinho — a chamada do Podcast “Alô! Olá! Alô vai tudo bem? Bem vindos ao Café com Crime, o Podcast onde você pode ser o aficionado por crimes reais, que você é, sem julgamentos”— e hoje esse tema virou uma questão de pop culture, né? É parte da nossa cultura popular, a gente fala de crime como se fosse nada. Tem a série Tremembé que estourou, e que está todo mundo falando sobre; o true crime deixou de estar nesse lugar de coisa estranha.
E aí com tudo isso, o podcast começou a dar super certo, hoje ele está entre os top 5 em podcast de true crime do Brasil, que é uma coisa assim super bacana, porque acabou criando uma comunidade de pessoas que querem falar desse assunto
R7 – Como contar a história de um crime tão complexo sem anular o papel da vítima?
Stefanie Z. – É, eu acho que para mim isso nunca foi uma questão tão grande, porque eu venho desse lado mais jornalístico, eu sei que escutar os dois lados é muito importante. Então, eu tento fazer episódios onde eu não foque só em um ou em outro.
Eu gosto muito de me aprofundar, de entender o contexto como um todo, de saber quem era a vítima, de onde ela era, o que ela fazia, quem é a família dela e entender a mesma coisa do assassino. E acho importante contextualizar dos dois lados, porque vai te dar uma perspectiva muito diferente do porquê o crime foi cometido e entender como a vítima foi parar ali naquele lugar.

É como o caso da Claudia Rockler. Um caso que aconteceu em Santa Catarina, onde Claudia assassinou o marido e colocou o corpo dele dentro de um freezer por 5 dias, enquanto ela falava: “Ah, meu marido tá desaparecido”, e é muito interessante porque você precisa entender porque que ela chegou no ponto de matar o marido.
Ela era a filha de uma mulher que se envolveu com prostituição, foi largada quando era criança para morar com uma senhora idosa, não foi para a escola até depois dos 7 anos de idade, nunca teve pai, nunca teve uma estrutura familiar e o sonho dela era ter uma família, o padrasto abusava dela sexualmente. Depois de um tempo ela conhece o marido que chamava Valdemir, um cara 12 anos mais velho do que ela, que tinha a figura de proteção que Claudia desejava, mas, ao mesmo tempo, era uma pessoa controladora, possessiva e ciumenta, além de ser casado e ter três filhos.
Ou seja, quando você olha, vê que tem todo esse histórico, e aí começa a entender tipo “Ah, ok. Entendi porque que o crime aconteceu, né”.
Não tem como contar uma história sem não ter a visão dos dois, quem eram os dois, de onde os dois vieram, e por que culminou nesse momento do crime. O crime em si, ele é isso, é a culminação de um contexto inteiro, e você precisa entender esse contexto.
O podcast foi crescendo e ele foi atingindo pessoas que eu jamais imaginei que ele atingiria, como os familiares de vítimas e dos criminosos. Sempre que eu estou escrevendo um episódio, eu fico pensando: “Ok, essa história pode chegar em alguma pessoa que está envolvida com esse caso de alguma forma ou em algum parente”. Então eu gosto de ter muito cuidado e muita responsabilidade com o que eu falo, porque eu sei que as pessoas podem estar escutando.
Eu não falo isso de um ponto de vista de medo, mas sim de um ponto vista de empatia, por entender que cada vez que as pessoas envolvidas (diretamente ou indiretamente) veem a história sendo reproduzida, é um sofrimento novo.
R7 – Dentro da narrativa do podcast, o que você acha que envolve mais as pessoas nas camadas dos crimes?
Stefanie Z. – Eu acho que existe uma curiosidade mórbida dentro de todos nós […] por exemplo, quando a gente tá viajando numa estrada, aí do nada o trânsito começa a parar e quando você vê, teve um acidente lá na frente. É meio que obvio que todo mundo que tá passando pelo acidente vai dar aquela olhadinha.
Você vai olhar para aquele evento incomum na sua vida, e eu acho que quando a gente tem um crime, essa curiosidade ela te prende nesse momento, nesse momento do incomum.
O ponto é como que o crime ocorreu? O caso Matsunaga, por exemplo. Por que essa história choca tanto? Ela não só mata o marido, como ela esquarteja o marido, bota numa mala, espalha e joga fora. Entendeu? E no caso da Suzane, o que chama tanto atenção? Primeiro a personalidade que é uma personalidade repleta de manipulação.
Ela conseguiu manipular o namorado e o irmão do namorado para matarem os pais dela, dentro da casa dela, na cama enquanto dormiam, espancados, e depois ambos simulam um roubo.
Além disso, o pós-crime se torna mais interessante do que o crime em si, no sentido em que ela se finge de inocente, chora no funeral, aí depois de tudo, ela vai e faz festa com os amigos na casa, onde os pais foram assassinados.
É uma coisa muito, muito bizarra, porque existem, outros casos de filhos que mataram os pais, mas esse choca por ter esses elementos tão incomuns de manipulação.
A gente tem todo o contexto, né? Contamos de onde a pessoa veio, chegamos no que é o incomum, e nos chocamos quando as coisas aconteceram de uma forma muito trágica. Mas, é aí que entra um ponto muito delicado, que é não cair no sensacionalismo.
Chega a ser estranho, porque as pessoas pensam coisas desse tipo, mas elas jamais vão cruzar essa linha racional. Então, entender por que os criminosos cruzam essa linha, o que acontece no momento do crime, e como os criminosos agem depois é o ponto que realmente envolve as pessoas.
R7 – Quais seriam os efeitos para a sociedade dessa espetacularização dos criminosos?
Stefanie Z. – Acho muito complexo. Não gosto de dar palco para o criminoso e ele não tem que ser um espetáculo.Essa coisa de romantizar o criminoso acaba gerando umas consequências muito ruins para a sociedade, porque a gente começa a achar que talvez não é tão ruim assim.
O crime é chocante e ele tem que ser incômodo. Tem que ser aquilo que você olha e te desperta medo, raiva, despertar uma sensação de “nossa, eu não quero estar perto disso. Como que eu sobrevivo longe disso?”
O complexo de série, eu como roteirista, entendo, que a produção precisa gerar uma conexão e identificação entre o personagem e as pessoas, para que elas continuem assistindo à série, porque caso não haja essa conexão você vai sair fora e para de assistir. Agora, quando os personagens principais da série são todos criminosos, aí você está falando que as pessoas têm que se identificar com criminoso de alguma forma.
Meu, que confusão mental isso não vai gerar na cabeça de uma pessoa. Depois, quando tá na vida real, se relacionando com alguém que é tóxico, que é violento, ou qualquer outro cenário, a pessoa acaba aceitando isso porque “ah não é normal, porque eu vi na série”.
A partir do momento que tudo isso vira um espetáculo, vem a romantização dos criminosos, e aí eu já acho que isso não é algo que eu gostaria de fazer parte.
R7 – De todos os episódios que você já fez, qual que foi o caso que mais te chamou atenção e qual foi o caso que você acha que mais repercutiu, ou que mais chamou a atenção do seu público?
Stefanie Z. – No geral, eu fico muito impactada com o caso que mexe com criança. Eu acho o cúmulo, como que você consegue fazer algo de ruim de uma criança inocente? Que não tem meios de se proteger de forma alguma.
Também fico muito sentida com casos que lidam com violência doméstica, porque eu acho que ali a pessoa já está numa vulnerabilidade tão grande, sabe? E para mim é muito interessante entender como a que vai ficando em meio essa situação. Eu acho que tem essas pessoas que sempre questionam como se fosse uma simples escolha, e não é uma simples escolha, né? Então sempre que eu pego esses casos, que eu começo a ver o que aconteceu na história dessa vítima, eu tento entender o motivo para ela chegar ao ponto de ficar num casamento violento e acabar sendo uma vítima fatal.
Eu tenho dois casos, que assim, mexem muito comigo. Eu acho que um deles é o episódio 150, que é o da menina em cativeiro.
É a história de uma menina que já vivia em uma situação de vulnerabilidade. Ela ia com a mãe pedir comida em um restaurante, tipo bar. O dono do bar pareceu se comover com a situação dela, dava comida, falava para voltar no dia seguinte, né? Normal. Até que ele fala para a mãe da menina: “Olha, eu posso empregar a sua filha aqui no bar, mas aí ela tem que morar comigo”. A mãe aceita, o melhor que ela podia fazer, para a filha naquela situação de vulnerabilidade, era dar um emprego, onde ela ganharia dinheiro e poderia se desenvolver.
A menina tinha 10 anos de idade e quando foi para o bar, foi colocada num porão e passou a viver em cativeiro. Ficou quase uma década de cativeiro, onde ela foi abusada sexualmente, teve filho com o abusador dela, conseguiu fugir uma vez, com a ajuda da mãe, porque aí a mãe acabou descobrindo e aí elas fugiram, mas o cara foi atrás delas, matou a mãe dela, e botou ela no cativeiro de novo. Ali, naquele porão, ela teve outro filho, que o cara, ele pegou o filho e se livrou do filho, só que agora ela já tinha uma criança e o cara começou a dar sinais que iria começar a abusar da filha dela também.
Já tinha passado aí quase 10 anos, né? Ela tinha uns 17 anos, não me lembro, mas ela consegue fugir, finalmente com a ajuda de alguém, o cara vai preso, tem um infarto na cadeia e morre.
Mas a vida dessa menina nunca melhorou. Essa é a verdade. A verdade é que a família do homem continuou perseguindo ela, porque eles alegavam que ele não fez nada de errado e que ela acabou com a vida dele e que ele tinha tido um infarto na cadeia e morrido por culpa dela. E caramba, né, isso acaba assim comigo.
Agora para os meus ouvintes, eu acho que esse caso chocou bastante, mas eu acho que eles gostam muito de coisas incomuns mesmo, coisas que têm plot twist, reviravolta, ou quando é um caso que te dá a abertura para criar umas teorias do que aconteceu, que não foi muito bem solucionado, sabe?
Um dos mais ouvidos do podcast é o caso do Marcelo Pesseghini. Os pais dele eram policiais e um belo dia a família toda foi encontrada morta dentro de casa. O garoto chamado Marcelo, que era um adolescente, os pais e as avós que moravam ali. A arma encontrada na mão do Marcelo. Com isso, o caso é resolvido, investigação fala que o Marcelo matou a família e depois cometeu suicídio, mas o Marcelo, também foi visto indo para a escola depois de ter matado os pais. Então o caso gerou aí uma brecha para todo mundo falar: “Como assim? Ele matou todo mundo, foi para a escola, foi viver a vida e depois veio e se matou? Como assim?”, aí as pessoas têm várias teorias de que não foi o Marcelo.
E outra história que é muito incomum, um dos episódios mais assistidos também, é a história da Geni coelho. Em que uma mulher adota um menino que tinha 14 anos, que não tinha família. Então ela adota era meio largado na vida e tudo mais, encontrou ali um porto seguro, ela trata ele como filho, matrícula na mesma escola do próprio filho dela e emprega ele numa empresa também. Você começa a ver que é uma mulher que está ali ajudando o menino, só que aí com o tempo você vai descobrir que, na verdade, ela começou a ter um caso amoroso com esse menino. Ela que já era uma senhora de 40, 50 anos, acho que era por aí, nessa faixa etária, e um menino adolescente, não dá para chamar de romance, né? Porque é um menor de idade, a gente tem aqui uma situação de abuso de um menor.
Então eles começam a ter esse romance, mas aí ela fica com ciúmes dele, porque ele começa a ficar de papinho de flerte com uma menina e ela mata ele e ainda pede ajuda dos filhos para ocultar o cadáver.
É uma história cheia de que reviravoltas, porque você tem uma pessoa que você nunca imaginaria que cometeria esse crime; uma mulher mais velha, aparentemente bondosa, que acolheu uma criança. E no final você descobre que havia um relacionamento completamente deturpado que resultou no assassinato.
A gente assume que o criminoso tem cara, e quando a vemos que é alguém que a gente não esperava, ficamos chocados, né? E é nesses casos, com essas reviravoltas que temos esse tipo de choque que acaba falando até um pouquinho dos nossos os próprios preconceitos, né?

Quando a gente fala de True crime, é tentar trazer esses pontos de reflexão sobre a justiça, sobre os efeitos psicológicos que alguém pode ter ou que a violência cria em cima de uma pessoa, trazer a conscientização sobre, por exemplo, violência doméstica e como agir se você está nessa situação. Tem muita gente que acaba descobrindo que está num relacionamento abusivo, porque escutou a história de outra pessoa e falou: “Nossa, mas eu vivo isso, isso era ruim, eu não sabia”.
O ponto também é usar o true crime como ferramenta, por exemplo, você mesmo estava falando agora, sobre usar como uma ferramenta de kit de sobrevivência.
Se perguntar: “Como que eu sobrevivo? Como que eu vejo sinais? Se eu tô andando na rua, vejo alguém, será que alguém tá me seguindo?”, e não é questão de você ficar noiada, nem você ficar paranoica, não é isso, mas é simplesmente você estar ligada ao que está acontecendo ao seu redor.
