STF reconhece racismo estrutural, mas Judiciário permanece branco

Confidencial

O Supremo Tribunal Federal (STF) alcançou decisão histórica no último dia 18 de dezembro, reconhecendo de forma unânime a existência de racismo estrutural no Brasil e determinando que o Estado adote um plano abrangente de combate ao problema nos próximos 12 meses.

Contudo, há uma ironia incômoda nesse reconhecimento: apenas 14% dos juízes brasileiros são negros e não há nenhum ministro negro que integra a Corte que proferiu a sentença.

O conceito jurídico em disputa

Na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 973, proposta por coalizão de partidos e entidades do movimento negro, o STF debateu se o Brasil deveria ser caracterizado como estando em “estado de coisas inconstitucional” (ECI) – um conceito jurídico que demanda intervenção judicial contínua e estruturada. Compreender o significado dessa categoria é importante para entender a divisão na Corte.

O “estado de coisas inconstitucional” é uma figura jurídica desenvolvida pela Corte Constitucional da Colômbia e incorporada ao Brasil através da ADPF 347 (2015), sobre o sistema penitenciário.

A caracterização exige presença de quatro elementos cumulativos: violação massiva de direitos fundamentais; persistência ao longo do tempo; insuficiência de soluções pontuais ou fragmentadas; e necessidade de coordenação entre múltiplos órgãos estatais.

Se reconhecido o ECI, o Judiciário mantém supervisão contínua sobre implementação das políticas, pode aumentar alocação de recursos públicos e intervém repetidamente se as medidas se mostrarem insuficientes. É ferramenta jurídica de intervenção estrutural profunda.

No entanto, sete ministros votantes rejeitaram essa caracterização técnica, argumentando que um conjunto de políticas públicas já existentes ou em andamento afasta a necessidade dessa figura jurídica.

Apenas Edson Fachin (presidente), Flávio Dino e Cármen Lúcia votaram pela caracterização como ECI, sustentando que violações contra negros são contínuas e resultam de processo histórico que remonta à escravidão.

Fachin argumentou que o Brasil preenche integralmente os quatro critérios: violação massiva em saúde, segurança alimentar e acesso ao trabalho; persistência desde o regime escravocrata; insuficiência de políticas reparatórias; e necessidade de atuação coordenada de múltiplos poderes.

Mesmo com essa divisão, a Corte foi unânime em determinar medidas concretas: revisão de políticas públicas, criação de protocolos de atendimento institucional, campanhas contra racismo e revisão de procedimentos de ação afirmativa para garantir efetividade real das cotas.

Decisão histórica impõe medidas ao Estado, mas expõe contradição de um Judiciário que reconhece a desigualdade racial sem refletir a diversidade da população brasileira.

Decisão histórica impõe medidas ao Estado, mas expõe contradição de um Judiciário que reconhece a desigualdade racial sem refletir a diversidade da população brasileira.Gustavo Moreno/SCO/STF

O paradoxo da magistratura

Enquanto 56% da população brasileira se identifica como preta ou parda, conforme Censo 2022 do IBGE, apenas 14,25% dos magistrados se declaram negros – sendo apenas 1,8% pretos e 12,4% pardos. Nos tribunais de segunda instância, apenas 16,4% dos desembargadores são negros.

No STF especificamente, a ausência é ainda mais marcante. A Corte não possui ministros negros atualmente. Essa representação zero contrasta dramaticamente com o fato de que a população negra é maioria demográfica do país.

A disparidade em termos de proporção populacional é brutal. Existem 18,64 juízes brancos por 100 mil habitantes versus apenas 2,39 juízes negros na mesma escala – ou seja, há quase oito vezes mais juízes brancos que negros.

Limites da decisão

O Conselho Nacional de Justiça reconheceu o problema e implementou iniciativas, tais como: o Programa CNJ de Ação Afirmativa para candidatos negros, as Resoluções 525 e 540 (2023) sobre paridade, além de reserva de vagas em concursos. A Resolução 598 (2024) criou o protocolo específico para julgamento de casos de discriminação racial.

Contudo, essas medidas administrativas enfrentam limite estrutural, pois a população negra permanece severamente sub-representada em vários setores da sociedade, principalmente na magistratura, conforme demonstrado.

A decisão do STF é um avanço jurídico real, mas seu verdadeiro teste será verificar se o governo e a sociedade implementarão com rigor; e se o Judiciário, simultaneamente, promoverá transformação radical em sua própria composição.

Reconhecer o racismo estrutural na sociedade enquanto se perpetua o racismo estrutural nas instituições judiciárias é incoerência que demanda resposta urgente.

Fonte: https://www.congressoemfoco.com.br/artigo/115154/stf-reconhece-racismo-estrutural-mas-judiciario-permanece-branco

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