
A conversa no carro era a continuação de um dia tranquilo na Praia de Carapebus, no Espírito Santo. Alice Rodrigues, de 6 anos, estava sentada no banco de trás, distraída, enquanto o pai dirigia e a mãe, grávida de oito meses, fazia companhia à menina no banco do carona. Ao se aproximar de casa, a família foi surpreendida com tiros disparados de outro veículo. A criança, atingida na cabeça, foi levada a um hospital pelo pai, mas não resistiu — ele e a mulher tiveram apenas ferimentos leves. Segundo a Polícia Civil, o crime, que aconteceu em 24 de agosto, foi provocado por traficantes do Primeiro Comando de Vitória (PCV), aliados ao Comando Vermelho (CV), que confundiram o automóvel da família com o de rivais do Terceiro Comando Puro (TCP). A menina foi enterrada no dia de aniversário de casamento dos pais.
A morte de Alice faz parte de uma série de ataques que tem amedrontado moradores do Espírito Santo e que envolvem a participação de facções cariocas e chefes do tráfico capixabas escondidos no Rio de Janeiro — Sérgio Raimundo Soares da Silva Filho, o Cauê, apontado como mandante do ataque, está foragido na comunidade da Rocinha, na Zona Sul. Se antes as disputas entre o Comando Vermelho e o Terceiro Comando Puro pareciam restritas ao território fluminense, há pelo menos dois anos elas vêm se expandindo pelo país.
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No primeiro capítulo de Conexões do Crime, publicado no domingo passado, o EXTRA mostrou a gênese das conexões criminosas que permitiram a expansão do Comando Vermelho (CV) para 24 estados e o Distrito Federal. No entanto, a influência carioca nos crimes praticados pelo país não se restringe apenas a essa facção. O Terceiro Comando Puro (TCP) também tem articulado uma migração de traficantes para favelas do Rio e investido em alianças Brasil afora para aumentar o controle sobre territórios e venda de drogas.
Após analisar processos e entrevistar promotores, policiais e secretários de Segurança, a reportagem detalha como a presença dessas organizações tem causado confrontos em outros estados, em semelhança ao que já acontece no Rio de Janeiro. Esses lugares foram identificados pelo EXTRA a partir de um levantamento feito durante a última semana. São eles: Espírito Santo, Minas Gerais, Ceará, Bahia e Acre. Além da “exportação das guerras”, as facções cariocas vêm disseminando táticas de ocupação e exploração de territórios, como cobrança de taxas ilegais e venda de sinal clandestino de internet, além de uso de fuzis e montagem de barricadas.
De acordo com o subsecretário de Segurança Pública do Espírito Santo, Romualdo Gianordoli Neto, desde o ano passado o Primeiro Comando de Vitória tem adotado estratégias mais agressivas para disputar áreas no estado capixaba. Segundo ele, a facção tem um conselho fora de presídios que é composto por nove integrantes, dos quais oito estão na Rocinha, favela que abriga o maior arsenal de fuzis do Rio.
— Essa nova gestão, encabeçada pelo Cauê, é mais anárquica e voltada à tomada de territórios. Tanto que, para atingir esse objetivo, ele tem enviado muitos fuzis para cá. No início do ano, ele mandou um carregamento de 40 armas. Pode não parecer muito para o Rio, onde a realidade é outra, mas aqui, no Espítrito Santo, é um número expressivo — pontua o subsecretário.
Grande Vitória está na mira de facção carioca
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O município de Serra, na Região da Grande Vitória, também foi, na última semana, alvo de ataques. Em um intervalo de apenas três horas, duas distribuidoras de bebidas foram atacadas nos bairros de Maringá e Laranjeiras, distantes menos de 15 quilômetros. Um homem de 34 anos e uma mulher de 40 foram mortos, e quatro pessoas ficaram feridas. De acordo com a Polícia Civil do Espírito Santo, as duas regiões são disputadas por criminosos do TCP e do PCV. Inclusive, a facção carioca é investigada como autora desses ataques.
Segundo o chefe do Departamento Especializado de Homicídios e Proteção à Pessoa (DEHPP) do Espírito Santo, delegado Ricardo Almeida, o intercâmbio de criminosos capixabas com o Rio transformou as dinâmicas das facções no estado:
— O Rio está importando esses indivíduos e, ao mesmo tempo, exportando as guerras e práticas de domínio territorial,como a exploração de serviços de internet e gás, entre outras atividades. Hoje, sabemos que eles não lucram apenas com o tráfico de drogas, mas também com diversas outras formas de crime.
O promotor de Justiça Anderson Batista de Oliveira, coordenador do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado, do Ministério Público de Rondônia, expõe que o Comando Vermelho também tem investido na exploração territorial de municípios do Norte do país.
— As facções entenderam que há uma vantagem econômica em replicar o modus operandi do Rio nos outros estados. Hoje, nós estamos vivendo aqui uma onda de ataques a provedores de internet. Quando os empresários não pagam a taxa imposta, os criminosos incendeiam os estabelecimentos. Isso é uma dinâmica já conhecida e praticada no Rio, mas nova por aqui.
Em 2024, 15 fuzis foram apreendidos no Espírito Santo. Neste ano, até outubro, o número subiu para 19. Os dados são do Observatório Estadual de Segurança Pública.
— A gente tem visto o número de apreensões crescer ano a ano. Antigamente, tinha policial que sonhava em apreender um fuzil, e agora isso já é uma realidade recorrente aqui. Mas, ainda é diferente do Rio, onde o crime estabeleceu uma lógica de confronto direto e exibe o armamento à vista de todos. Aqui, os fuzis costumam ficar escondidos. Mesmo assim, há uma grande preocupação com o futuro — diz Gianordoli Neto.
