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Ex-presos têm dívida com Estado mesmo após cumprir pena

1 Uma jovem grávida de oito meses dirige-se a um supermercado e, quando vai efetuar o pagamento na função débito, tem o cartão recusado. Sem entender o motivo, ela consulta o saldo e se surpreende com a observação "bloqueio judicial" ao lado do único valor disponível na conta — R$ 375.

Um homem fica perplexo ao saber que a sua motocicleta, utilizada para gerar a principal fonte de renda da família, corre risco de ser penhorada. Um idoso passa a ter uma série de problemas econômicos e chega a viver na rua.

O único aspecto em comum entre os três é o fato de serem egressos do sistema prisional e terem adquirido uma dívida com o Estado depois de terem cumprido pena.

As dívidas impostas a essas pessoas são oriundas de uma multa aplicada no momento em que a sentença é estabelecida, a chamada pena de multa. Excluindo-se os casos de crimes contra a vida ou sexuais, todos estão sujeitos a cobrança, prevista no artigo 51 do Código Penal. Desde 2019, o não pagamento impede a extinção da pena - mesmo que todo o tempo de prisão tenha sido cumprido. A pessoa também fica com os direitos políticos suspensos, sendo proibida de votar, além de estar sujeita ao bloqueio de valores ou penhora de bens.

Em São Paulo, estado com a maior população carcerária do país (197 mil), os casos de execução de multas têm aumentado vertiginosamente. Até o dia 31 de março, 208 mil estavam em andamento. Eram 6 em janeiro de 2020, segundo dados fornecidos pelo Tribunal de Justiça do Estado à Agência Pública. Apenas na capital são 50.050 ações referentes a multas não pagas.

A aplicação da pena de multa está prevista no Código Penal desde 1940, mas até recentemente era assunto de natureza fiscal, não criminal. Após definir a pena, o magistrado apenas informava à Fazenda Pública, responsável pela cobrança, que a multa havia sido aplicada. A Fazenda deixava de executar a grande maioria das cobranças por considerar que o custo do ajuizamento das ações era maior que a quantia que deveria ser paga. Na capital paulista, por exemplo, cerca de 22 mil dos 50 mil casos de multas em aberto tratam de multas entre R$ 200,01 e R$ 500.

Foi o julgamento do Mensalão e a Lava Jato que levaram a uma mudança de entendimento que hoje se reflete no grande crescimento de egressos do sistema ainda com penas em aberto, ou "presos em liberdade".

Ao julgar a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 3.150 no fim de 2018, o ministro do Supremo Tribunal Federal Luís Roberto Barroso decidiu que a multa é de natureza penal e que a sua execução seria atribuição prioritária do Ministério Público. A nova compreensão foi seguida pelo Superior Tribunal de Justiça e consolidada pelo chamado Pacote Anticrime, projeto legislativo de autoria do então ministro da Justiça e atual senador Sergio Moro (União Brasil), que se converteu na Lei nº 13.964, de 24 de dezembro de 2019.

O professor e pesquisador Luigi Giuseppe Barbieri Ferrarini explica que a decisão do STF foi pensada para "atingir patrimônios gigantescos" de condenados em casos como Mensalão e Lava Jato e grandes traficantes de drogas. "O Supremo fez isso porque queria tirar o dinheiro deles. Não iam extinguir a pena enquanto não pagassem a multa. Só que por outro lado eles não viram que isso ia atingir todo sistema e gerar um impacto sobre as pessoas pobres", diz.

Estado laboratório

Na tentativa de resolver o bloqueio de seu cartão, Jéssica Santos, a gestante que abre esta reportagem, recorreu à Defensoria Pública. Soube então que o processo que motivou o bloqueio tinha relação com a sentença de oito anos de privação de liberdade pelos crimes previsto na Lei de Drogas que já tinha cumprido: R$ 22.260 de pena de multa pela condenação por tráfico e R$ 15.900 por associação ao tráfico, totalizando R$ 38.160.

Cada "dia-multa" equivale a 1/30 do salário mínimo vigente, o que atualmente corresponde a R$ 44. O valor total da multa depende do delito e da análise do juiz. Porém, alguns tipos de crimes já têm um mínimo de dias-multa estipulado pela lei. No caso de pessoas condenadas por roubo, furto ou estelionato, o montante pode variar entre 10 e 360 dias-multa, ou R$ 440 e R$ 15.840. Em penas relacionadas ao tráfico de drogas, como a de Jéssica, o mínimo previsto é de 500 dias-multa, ou R$ 22 mil, podendo chegar a 1.500 dias. Há ainda a possibilidade de o juiz multiplicar os dias multas por cinco vezes o valor do salário-mínimo.

Jéssica conta que quando deixou a prisão em 2018, após ter cumprido parte da pena, não foi informada de que deveria quitar o valor nem de que o não pagamento poderia gerar problemas. Desempregada e hoje com uma filha de 3 meses, ela mora com a mãe, que vive de bicos, e não tem condições de efetuar o pagamento. No dia 6 de março de 2023, passados cinco anos da condenação, a Justiça julgou extinta a pena a pedido da Defensoria.

Para o advogado criminalista e presidente do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), Guilherme Ziliani Carnelós, a aprovação da lei trouxe um impacto desmedido para a população mais vulnerável. "O mínimo da pena de multa para um pequeno traficante é de R$ 20 mil. Aí, um rapaz de 19 anos, que é preso em flagrante com 50 gramas de cocaína e R$ 60 no bolso, cumpre pena e sai com a multa mínima. Qual é a chance dessa pessoa, que foi presa, que saiu com 22 anos do sistema carcerário, conseguir um emprego e, para além da própria subsistência, juntar R$ 20 mil a ponto de pagar a pena de multa?", questiona.

Os dados mostram que a aplicação da pena de multa em São Paulo começou a crescer após atribuição da competência à 1ª Vara de Execuções Criminais, em agosto de 2021. A vara tem nove servidores e um juiz dedicados ao tema. O Estado tem sido visto por especialistas ouvidos pela reportagem como um "laboratório" do novo entendimento.

A defensora pública Camila Tourinho também considera que a nova estrutura da vara contribuiu para o aumento. "Querendo ou não, agora eles precisam justificar a existência dessa vara", relata.

O impacto foi tão repentino que algumas organizações passaram a estudar meios para atuar nos casos. Em 2022, o IDDD iniciou um mutirão para ajudar pessoas com dificuldade para quitar a multa e elaborou um material de apoio sobre o tema.

Entre agosto e dezembro de 2022, a organização atuou em 251 casos: 80% dos egressos atendidos se declararam negros; 72% afirmaram ter filhos ou dependentes; quase um quinto declarou estar em situação de rua; 72,1% disseram ganhar menos de um salário-mínimo; 36,3% não completaram o ensino fundamental, 72,5% não concluíram o ensino médio, e mais da metade está desempregada. Entre os empregados, 82,4% não têm carteira assinada.

R$ 13 mil de multa e dez dias para pagar

Condenado por tráfico, *Osvaldo conta que assim que deixou a prisão, para cumprir o restante da pena em regime aberto, recebeu uma carta informando que tinha dez dias para pagar os R$ 13.500 correspondentes à pena de multa.
"Como que uma pessoa que fica dez anos presa vai sair, vai ter R$ 13.500 para pagar essa multa em dez dias?", questiona. "Tentei parcelar, pra pagar uns R$ 300 por mês, mas não aceitaram."

Fonte: https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-publica/2023/05/02/presos-em-liberdade.htm

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