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Sintomas de uma sociedade ainda doente

 Estar há quase sete anos na reitoria da UFPR tem sido uma experiência desafiadora. Sinto em vários momentos a alegria de compartilhar com tantos e tantas o orgulho de pertencer a uma instituição centenária (somos a universidade mais antiga do Brasil) que está sempre no topo nos rankings importantes, e crescendo. Ao conversar com pessoas de todos os campos – o empresarial, sindical, do terceiro setor – identifico aquela sensação positiva de termos em nosso Estado essa usina de conhecimento, de formação, de inovação, a nossa UFPR.

Mas também vejo ocorrerem situações, por assim dizer, inusitadas. Nos últimos anos nós até nos acostumamos em receber todo o tipo de ataque absurdo, visto que havia em vários círculos uma distopia crônica que buscava demonizar as universidades públicas brasileiras como lugares de perversão e de “balbúrdia”. É certo que esses ataques geralmente vinham de pessoas que nunca colocaram os pés numa universidade e que não tinham ideia do que acontecia aqui dentro. Mas ainda assim, talvez em razão da polarização patológica que a nossa sociedade vivia, “fake news” absurdas ou distorções toscas ganharam uma divulgação desproporcional. Parece que a lógica era: se havia quem desse o “click” ou o “like”, por que não dar visibilidade ao absurdo? E assim defeitos eram inventados ou cada pequeno problema (todos temos alguns, claro) era olhado com um microscópio. Toda falha sempre foi hiperdimensionada. Se nossa complexa estrutura (de mais de 40 mil pessoas e diversos campi por todo o Paraná) não funcionasse como um relógio suíço, apesar de todos os problemas orçamentários que temos e tivemos, a reação contrária seria implacável.

Depois que passamos por uma trágica pandemia, na qual mesmo os mais obtusos tiveram que se curvar ao fato de que a ciência é essencial para a vida e que sem os/as cientistas das universidades públicas estaríamos em péssimos lençóis (pois é nelas que está a maior parte dos cientistas), eu imaginava que essa onda surreal iria arrefecer. Mas percebo, com um bocado de tristeza, que nossa sociedade ainda mostra muitos sintomas de uma doença que insiste em persistir.

Esta semana, uma mobilização coletiva de revolta por conta de um evento ocorrido no último sábado de manhã num dos auditórios da nossa universidade ganhou as redes sociais. Pelo que soube, nesse evento, pessoas defenderam a extinção da polícia (ou então, a desmilitarização da polícia) e de outro lado havia defensores das forças policiais. As informações que nos chegam sugerem que o confronto foi premeditado, anunciado e então devidamente gravado, para produzir, com sucesso, o pretendido alarde nas redes sociais. A “lacração”, a performance e a violência como métodos, todos sabemos, já faz até parte da paisagem política brasileira; o argumento, a mediação e a ponderação que se lixem. E parece que esse debate escalou ao ponto de virar motivo de confronto na Assembleia Legislativa do Estado: ali um deputado extremista, depois de atacar a Universidade por ter sediado o evento, pregou o extermínio dos bandidos a pretexto de defender a polícia.

Bem, estou consciente, claro, da seriedade e da complexidade do problema da segurança pública, da violência e do papel das polícias. A universidade, pela sua própria natureza, não é indiferente a isso e deve refletir sobre essas questões relevantes, como sobre tantas outras que afligem o nosso tempo. É o que universidades devem fazer: elas pensam, elas debatem. Não entro aqui no mérito das ideias proferidas ali, se foram boas ou más; eu naturalmente tenho posições sobre o assunto, mas elas não são importantes para o que quero dizer, que é algo de outra ordem. A questão é que o acontecimento e sua repercussão desmedida mostram como a nossa sociedade, infelizmente, está ainda doente.

Em primeiro lugar, claro, pelo fato de algumas ideias proferidas num sábado de manhã, num auditório com um punhado de pessoas, tenham tido uma escalada a tal ponto de irem para a imprensa, para a discussão entre deputados estaduais e, claro, para as redes sociais, o que me parece claramente desproporcional. Ali não se estava decretando se a polícia devia acabar ou ser desmilitarizada; estava-se debatendo o tema. Dali não iria sair nenhuma lei ou decreto; só posições de uma parte ou de outra.

Eu me atenho ao fato de que o que parece é que existem pessoas que têm uma obsessão pela produção da polarização, pelo debate violento e destemperado, pela pura disseminação de controvérsias. Parece que, para essas pessoas, esse é o sentido de viver. Mas quando o grito supera o argumento, se a performance da comunicação do que se diz é mais importante que sua densidade, se a “edição” da mensagem se sobressai ao conteúdo, e, pior, se tudo isso forma uma marola que chega ao ponto da histeria e ocupa o tempo e as preocupações das pessoas durante tantos dias, bem, isso para mim é um sinal de que a nossa sociedade continua doente.

Mas, sendo reitor da universidade, há ainda outra coisa que me assombra na mesma proporção: em meio a essa controvérsia toda, a demonstração do imenso desconhecimento sobre como as universidades funcionam enquanto lugares de debates. É certo que algumas pessoas sentiram desconforto com ideias que foram proferidas numa discussão num sábado de manhã num auditório com poucas dezenas de pessoas; isso eu sou capaz de entender. Mas que a partir disso se desperte nessas pessoas uma revolta, de maneira estranha e desavisada, contra toda uma instituição universitária, bem, aí acho que algum elo se perdeu.

O defeito sério de raciocínio aqui é confundir cada reflexão que ocorre em um auditório, em um evento entre centenas de outros que ocorrem todas as semanas numa universidade, com uma “posição oficial” da universidade. E que se incorra numa falácia que já era objeto de reflexão desde a filosofia grega: confundir o todo com a parte. E, a partir daí, que se ataque toda a instituição. E que se espere, então, que se a universidade se comporte como um órgão censor ou repressor.

Para quem não sabe, que fique sabendo agora: a UFPR tem dezenas de campi, em várias cidades diferentes; tem quase 100 programas de pós-graduação; tem 128 cursos de graduação, em todas as áreas do conhecimento, com número equivalente de centros acadêmicos; tem centenas de grupos de pesquisa e extensão, nos temas mais variados e com todo tipo de abordagem. E as reflexões que saem desses coletivos são abordadas em centenas de diferentes auditórios que existem na nossa enorme estrutura, de maneira profundamente plural e diversa, embora só algumas delas sejam “eleitas” para ganhar o palco das redes sociais.

A Universidade (e toda universidade que respira liberdade no mundo é assim) é uma estrutura complexa, livre e descentralizada; e deve inclusive fomentar essa liberdade, porque do contrário não germinam em nosso solo a inteligência e a criatividade. Claro que o controle mínimo que se deve ter por parte da instituição deve incidir pela restrição de discursos discriminatórios, autoritários, violentos e que venham a ofender direitos dos outros. Afora esses limites, a liberdade deve ser a regra.

Exigir que a nossa instituição faça um “controle prévio” do que os vários coletivos internos ou externos queiram discutir seria uma medida autoritária, coisa de gente que não aprecia liberdade, coisa de quem acha natural censura prévia ou para quem tem saudades dos tempos da ditadura. Uma universidade que se defina como entidade pensante jamais pode fazer isso. Isso não significa que todos os debates ocorridos dentro dos muros sejam necessariamente de alto nível e que sempre exalem inteligência refinada; significa apenas que interferir em qualquer debate (em seu conteúdo ou em sua qualidade) seria medida autoritária, salvo naquelas ressalvas já feitas antes.

Se alguém quer qualificar um debate ou apresentar os seus contrapontos, que participe dele com argumentos. Que o faça de modo honesto, sem performance ou lacração; que traga dados e exerça o dissenso com probidade e disposição de diálogo. E que, assim o fazendo, seja respeitado na sua posição divergente. Enfim, que dispute de modo livre e respeitoso a batalha das ideias. Isso é o que se espera de todos os lados. A universidade absolutamente não pode ser de outra forma.

Enfim, é chocante verificar, a partir da eclosão desse episódio, como existem pessoas que esperam que a instituição que é símbolo da inteligência deva, nessa arena livre da circulação das ideias, promover a censura, o controle, a restrição, a limitação, a proibição, a punição. Vejo isso, repito, como sintomas de uma sociedade que insiste em permanecer doente.

O remédio, ou ao menos um dos mais eficientes? Mais liberdade, mais pluralidade, mais inteligência. A universidade assume o compromisso de dobrar essa aposta.

Fonte: https://www.plural.jor.br/artigos/sintomas-de-uma-sociedade-ainda-doente/

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