João Ferreira dos Santos era procurado há 30 anos acusado de homicídio. Era um dos mandados de prisão mais antigos do país. — Foto: Divulgação/Polícia Civil
O Brasil tem 10 mil procurados pela Justiça há mais de 10 anos, mostra um levantamento do g1 no Banco Nacional de Mandados de Prisão (BNMP), que reúne ordens de prisão de todos os tribunais do país.
O número equivale a 3% dos 368 mil mandados de prisão que estavam vigentes no início de outubro, quando o g1 extraiu os dados do portal, mantido pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
Entre os mandados mais antigos, quatro foram expedidos há mais de 30 anos. Dois dos alvos desses processos foram localizados após o g1 questionar a polícia sobre o não cumprimento das ordens (saiba mais).
Segundo o CNJ, do total de mandados em vigor até o dia 19 de novembro, 77% são de natureza penal. A maioria desses mandados (58%) refere-se a cumprimento provisório. Ao todo, o país possui 108.593 pessoas procuradas para cumprir condenações definitivas e 149.728 para cumprir mandados provisórios.
Para especialistas, a existência de mandados em aberto há tanto tempo decorre, sobretudo, da falta de integração entre as forças de segurança pública.
"Isso assusta, de fato, porque é um número grande", afirma Roberta Fernandes, pesquisadora associada do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). "A segurança pública brasileira não aprendeu ainda a trabalhar de forma integrada."
Para Michel Misse, professor de pós-graduação em Justiça e Segurança Pública da Universidade Federal Fluminense (UFF), a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) da Segurança Pública, apresentada pelo governo Lula (PT) em outubro, é positiva nesse sentido, ao promover a integração das polícias.
Uma das mudanças almejadas pelo governo com a PEC é padronizar boletins de ocorrência, mandados de prisão e certidões de similar ao que ocorre no Sistema Único de Saúde (SUS), estabelecendo uma linguagem unificada entre as forças policiais.
“O que a gente tem são crimes elucidados onde o problema é que você não encontra a pessoa para ela cumprir a pena", diz Misse.
O Ministério da Justiça foi procurado, mas não se manifestou. O g1 não conseguiu contato com as defesas dos procurados citados nesta reportagem.
Procurados viviam em cidade vizinha ao crime, mas em outro estado
João Ferreira dos Santos e João Maria Ferreira eram procurados por um homicídio cometido em 1991 em Timon, cidade maranhense na divisa com o Piauí.
Conforme o relatório policial, após beberem, os dois — à época, com 23 e 34 anos, respectivamente – começaram a xingar a vítima que, ao questioná-los, foi agarrada e esfaqueada 17 vezes, na frente da mulher e da filha.
Os autores fugiram, a polícia concluiu as investigações e o Ministério Público denunciou ambos os irmãos pelo assassinato. Em 1993, a Justiça do Maranhão determinou que fossem presos preventivamente para serem julgados. Os réus, entretanto, nunca foram encontrados.
Na quarta-feira (13), após o g1 questionar a Polícia Civil do Maranhão sobre o porquê de os mandados de prisão ainda estarem abertos, João e João Maria foram localizados em Teresina, cidade vizinha de Timon. João, que trabalha como estivador, foi preso. João Maria não foi detido por estar internado em razão de um acidente vascular cerebral, segundo as autoridades maranhenses.
O delegado-geral do Maranhão, Almeida Neto atribui a demora no cumprimento de mandados judiciais a falta de estrutura das polícias.
"Atualmente, temos 300 mil mandados de prisão para cumprir no Brasil e, quando alguém está foragido, o dever da prisão não é só da polícia, mas de todo o sistema de Justiça. Mas a estrutura disponível pela polícia [para cumprir os mandados] também pode contribuir", afirmou.
Misse aponta que, por falta de integração, mesmo pessoas que eventualmente já estão detidas podem constar, ainda, como procuradas.
"O que acontece é que, às vezes, você tem um mandado de prisão aberto no Rio de Janeiro, mas a pessoa que você quer prender está presa no Paraná. E essa informação não está disponível porque não há um sistema nacional integrado de informações", explica o especialista.
Presidente da Associação dos Delegados de Polícia do Brasil (Adepol), Rodolfo Laterza, explica que, sem um banco de dados integrado, quando a Justiça de um estado expede um mandado de prisão contra alguém que reside em outro, a ordem não é enviada diretamente para todas as delegacias. Em vez disso, ela segue para um departamento específico dentro das polícias civis, conhecido como Polinter.
Prisão é difícil mesmo em caso de condenação, diz delegado
João e João Maria ainda não foram julgados. O mandado de prisão contra eles é preventivo, ou seja, não se destina ao cumprimento de uma sentença.
No entanto, mesmo em casos de condenação, há dificuldades para efetuar a prisão, afirma Rodolfo Laterza, presidente da Adepol.
“Infelizmente, não há rastreamento adequado de determinados criminosos. Quando eles são submetidos a uma sentença penal condenatória e é decretada a prisão, isso é registrado no sistema [judiciário] e, muitas vezes, fica por isso mesmo”, afirma Laterza.
Antônio Afonso Coelho é alvo de um mandado expedido em 1990 por matar um homem a tiros de espingarda no ano anterior em Baião (PA).
Embora a ordem seja preventiva, Coelho já foi condenado e a sentença — 22 anos em regime fechado — se tornou definitiva em novembro de 2012.
Para Laterza, os casos mais graves são os que trazem mais dificuldades para localização do suspeito — os quatro mandados de prisão com mais de 30 anos são de homicídio.
"Criminosos normalmente envolvidos em condutas violentas, como homicídio e latrocínio, são os mais complexos. Geralmente, são indivíduos com comportamento reiterado e habitual de delinquência, não possuem endereço fixo e muito menos uma profissão estável", afirma o presidente da Adepol.
Natural de Uruburetama (CE), José de Ribamar Moreira é alvo de um mandado de prisão preventiva expedido há 31 anos, suspeito de um homicídio ocorrido em 1991 em Medicilândia. À época, ele tinha 54 anos e agora, tem 87. Até a publicação desta reportagem, a ordem seguia vigente.
Um estudo recente do Instituto do Paz mostrou que 6 a cada 10 homicídios ficam sem solução no Brasil. De 22.880 assassinatos que aconteceram no ano de 2022, apenas 8.919 geraram denúncias criminais até o fim de 2023.
Especialista alerta para elevada população carcerária: 'Um milhão de presos'
Michel Misse chama a atenção para o impacto que o cumprimento de todos os mandados teria sobre a superlotação dos presídios brasileiros.
Segundo dados do Ministério da Justiça, no primeiro semestre de 2024, o Brasil enfrentava um déficit de 174 mil vagas em presídios, com 763 mil detentos para 488 mil vagas disponíveis.
"Em termos quantitativos, nós já estamos com 800 mil pessoas presas ou em prisão provisória. O Brasil é a terceira população prisional do mundo, com estes outros, nós teríamos mais de um milhão de presos", completa o professor.
São Paulo — Dois mandados de prisão temporária e cinco de busca e apreensão são cumpridos na manhã desta quinta-feira (28/11), em três cidades de São Paulo, no âmbito de uma operação que investiga suposto esquema operado pelo Primeiro Comando da Capital (PCC) de obstrução da Justiça, violação de sigilo e corrupção.
Segundo as investigações do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco), do Ministério Público de São Paulo (MPSP), criminosos ligados ao PCC, advogados e outras pessoas obtiveram indevidamente senha de servidor do MPSP para acessar processos sigilosos no Tribunal de Justiça paulista (TJSP).
Com a senha, os criminosos conseguiram acessar o sistema de processos, realizando “violação sucessiva de dados sigilosos e frustração de investigações da polícia e do Ministério Público”.
Participam das diligências desta quinta-feira promotores de Justiça, servidores do MPSP e 40 policiais militares.
O ex-secretário de Polícia Militar, coronel Luiz Henrique Marinho Pires, teve seu carro roubado, neste sábado (23), por criminosos que estavam em duas motos, na esquina das ruas Arquias Cordeiro com Rua Martins Lage, no Engenho Novo, Na Zona Norte do Rio. O veículo foi recuperado por policiais militares do 3º BPM (Méier), nas proximidades da favela do Arará, em Benfica.
De acordo com a Assessoria de Imprensa da PM, os policiais militares do 3º BPM foram acionados pela vítima após o roubo. Segundo com o comando da unidade, a equipe realizou buscas pela região e recuperou o veículo e os pertences da coronel. A ocorrência foi registrada na 23ª DP (Méier).
A Polícia Civil informou que as investigações estão em andamento para identificar os autores do crime.
O coronel Luiz Henrique Marinho Pires ficou no comando da Secretaria de Estado de Polícia Militar até abril deste ano. Ele ocupou o cargo por quase três anos do governo de Cláudio Castro.
Um mundo sem cores, repleto de comprimidos e que alterna gritos e silêncios. É assim a atmosfera de "Ninguém Sai Vivo Daqui", filme que reconta o "Holocausto Brasileiro". Para além dos horrores dos fatos em si, as imagens em preto e branco e os personagens criam um clima de suspense que lembra como a vida real pode ser também aterrorizante.
A história ficou conhecida pelo livro de Daniela Arbex, de 2013, que relata os crimes ocorridos Hospital Colônia de Barbacena, em Minas Gerais. A instituição funcionou durante quase oito décadas no século passado e ficou conhecido pelo tratamento desumano que oferecia aos pacientes.
"Pelo menos 60 mil pessoas morreram entre os muros do Colônia. Tinham sido, a maioria, enfiada nos vagões de um trem, internadas à força. Quando elas chegaram ao Colônia, suas cabeças foram raspadas, e as roupas, arrancadas", conta a autora no livro.
O maior manicômio (como era chamado na época) do Brasil já tem um documentário produzido pela Netflix e a série "Colônia", produzida pelo Canal Viva e disponível no Globoplay, que lembram as mesmas histórias e personagens do filme. Agora, o tema se repete na montagem de André Ristum, com Fernanda Marques e Andréia Horta no elenco, o que, segundo a autora, é importante para manter a história viva.
"Esse é um tema que continua muito urgente, muito atual. Tudo que a gente puder falar sobre a história da saúde mental no Brasil e desse modelo tão excludente, que no caso do Colônia permaneceu por mais de oito décadas, é altamente necessário. Esquecer é negar a história", diz Arbex, que coloca o tema dos hospitais psiquiátricos brasileiros em jogo.
Na montagem de André Ristum, os elementos de suspense foram escolhidos para retratar o horror daquela situação: "Pensando na história, pensando na vida dessas pessoas, claramente se tratava de um filme de terror da vida real. A pessoa vive o terror real ali nesse lugar, ainda mais depois que começam a ser entupidos de remédios, de choques elétricos, todo tipo de tratamento". Os pacientes são retratados desde o início recebendo pílulas e tratamentos que alteram seus comportamentos.
Mas, o que chamou mais atenção para o diretor, foram os casos de pessoas saudáveis, sem diagnósticos de doenças mentais, que eram levadas ao hospital: grávidas solteiras, prostitutas, amantes, homossexuais, pessoas negras…
"Isso é uma loucura, porque vai muito além de uma instituição psiquiátrica e de tentar dar um tratamento adequado dentro do entendimento da época às pessoas. A gente está falando de outro modelo de cadeia, uma cadeia que não tem juiz julgando. E a pessoa é enviada para esse lugar e pode ficar lá para o resto da vida", diz Ristum.
Foi isso que o fez escolher a personagem de Elisa, interpretada por Fernanda Marques, uma mocinha grávida solteira, para ser a protagonista do longa. "Que nível de desumanidade tem uma família que bota uma filha, ou uma amante lá dentro? Quis dar uma identificação ao espectador, no sentido de pensar: 'Podia ser a minha filha'", conta ele.
Fernanda, que considera esse o papel mais importante de sua carreira, conta que enfrentou uma preparação intensa para viver a gestante: "Fui colocada numa sala sozinha, fechada, ouvindo sons de gente sendo torturada". "Eu acessei lugares no meu corpo, um choro do útero, que eu nunca senti na minha vida", lembra ela. No filme, Elisa (spoiler!) é obrigada a abortar.
Com roteiro de André Ristum, Marco Dutra e Rita Gloria Curvo, "Ninguém Sai Vivo Daqui" tem ainda Augusto Madeira, Rejane Faria, Naruna Costa, Aury Porto, Arlindo Lopes e Bukassa Kabengele no elenco. O filme estreia na quinta-feira (11) nos cinemas.
Com milhares de usuários civis e militares, sistema Córtex do Ministério da Justiça explodiu desde o governo Bolsonaro
O Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) opera e disponibiliza para mais de 180 órgãos públicos uma poderosa plataforma de dados capaz de monitorar pessoas e veículos nas ruas em tempo real e sem autorização judicial. O MJSP reconheceu à Agência Pública que os 55 mil usuários civis e militares do sistema não estão obrigados a explicar o motivo da escolha de seus “alvos”.
Para fazer o monitoramento, o sistema de vigilância e controle se vale, entre outras informações, de imagens captadas em tempo real por 35,9 mil câmeras espalhadas por lugares públicos em todo o Brasil: rodovias federais, ruas e avenidas urbanas, entradas e saídas de estádios de futebol, entre outros pontos. O sistema conta ainda com uma funcionalidade chamada de “cerco eletrônico”, que na prática consegue monitorar ao vivo veículos por ruas e avenidas pelo país a partir da “leitura” dos caracteres das placas.
A Pública apurou que os usuários do sistema podem vigiar “alvos” em tempo real sem explicar a necessidade, quem ordenou o monitoramento, qual foi o tempo de sua duração nem o resultado da vigilância.
Oficialmente chamado pelo governo federal de Plataforma de Monitoramento Córtex, o sistema é usado como ferramenta do setor de “inteligência” do MJSP, em Brasília (DF), condição usada como argumento jurídico para que as consultas ocorram sem prévia análise do Judiciário, fora de inquéritos policiais e processos judiciais.
Indagado pela Pública, o MJSP reconheceu que “não há necessidade de se motivar a consulta [no Córtex], haja vista se tratar de consultas visando atividades de segurança pública (que é o objetivo do sistema). Porém, caso haja suspeita de irregularidades nas consultas, deve haver atuação da auditoria”.
Embora seja o criador, coordenador e mantenedor da plataforma, o MJSP disse à reportagem que não cabe à pasta controlar o acesso das consultas dos “alvos” pelos outros órgãos públicos que usam o Córtex.
“O controle de acesso para a realização de consultas de ‘alvos’ é feito pelo ponto focal de cada instituição, indicado pelo seu representante maior, através de ofício, sendo que todas as consultas realizadas deixam log de quem as realizou, para que seja possível a auditoria”, respondeu o MJSP.
A portaria ministerial que regulamenta o uso do Córtex indica que as auditorias devem ser feitas pelos próprios órgãos que têm acesso ao sistema, com envio mensal de relatórios sobre o uso da plataforma pelos 55 mil usuários civis e militares.
Em resposta à Pública, porém, o MJSP afirmou que foram registrados somente 62 relatórios de auditoria no sistema, em uso há mais de quatro anos.
Sobre o baixo número desse tipo de documento, considerando que são mais de 180 órgãos usuários do sistema há anos, o MJSP argumentou que “puxou para si a responsabilidade em realizar relatórios de auditoria, sendo que todos os processos de auditoria do órgão estão sendo revisados. Portanto, os 62 relatórios produzidos foram todos no âmbito do MJSP”.
Monitoramento 24h, por tempo indeterminado
Entre os milhares de usuários do Córtex há membros das Forças Armadas, policiais civis, militares e federais, agentes penitenciários, integrantes do Ministério Público, bombeiros, guardas civis e até servidores de órgãos de fora do Sistema Único de Segurança Pública (SUSP).
Em resposta a um pedido feito pela Pública por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI), o MJSP se recusou a dizer quantas pessoas e veículos já foram vigiados por meio do Córtex, sob a alegação de que, “caso a informação seja divulgada, poderá comprometer investigações e/ou operações policiais em andamento”. A reportagem não havia solicitado nomes, mas apenas os números totais, já consolidados.
A negativa ao pedido de LAI da Pública teve respaldo da Controladoria-Geral da União (CGU), que manteve o sigilo das informações, embora tenha admitido à reportagem, também via LAI, nunca ter feito uma auditoria sobre o uso do Córtex.
O MJSP reconheceu, também por meio da LAI, que os “alvos” do Córtex podem ser vigiados por tempo indeterminado, “até que sejam colhidos eventuais indícios” para indiciamentos graças à natureza de “ferramenta auxiliar de investigação”.
Conforme divulgado pelo próprio ministério em resposta a outro pedido feito pela LAI em 2022, um total de 360 mil “alvos” havia sido “identificado” até janeiro daquele ano. De acordo com o então governo Bolsonaro, esses “alvos” seriam “veículos furtados e roubados, pessoas desaparecidas, entre outras bases integradas ao sistema”.
Entretanto, a Pública apurou que não há como confirmar a alegação da gestão bolsonarista.
Uma tentativa de auditoria do próprio MJSP, conduzida em 2023, desistiu de “realizar auditoria do passado”, em referência ao uso do Córtex antes do atual governo.
O MJSP também identificou casos de venda de senhas e presença de contas robotizadas no sistema, capazes de extrair massivamente dados sigilosos de milhões de pessoas no Brasil. Suspeitas dessa natureza foram denunciadas anteriormente pelo site The Intercept Brasil e pela revista Crusoé.
A Pública apurou que o ministério descobriu pelo menos um caso de usuário que fez 1 milhão de pesquisas no Córtex em um único dia, o que sugere o uso de robôs para a extração de dados sensíveis.
O MJSP suspeitava também da presença de “laranjas” no sistema, com pessoas sem nenhuma ligação com órgãos de segurança pública operando o Córtex.
Na ausência de um controle externo, independente ou interno eficaz sobre a motivação das consultas ao sistema, a seleção dos “alvos” pode recair sobre adversários políticos do governo e do MJSP e até em benefício de interesses pessoais dos usuários.
Por exemplo: um agente pode rastrear em tempo real o veículo de sua cônjuge graças a imagens obtidas via Córtex sem precisar, antes, indicar a motivação para tal monitoramento. Entre os documentos do MJSP obtidos pela Pública aparece a menção a essa possibilidade, chamada pela equipe do ministério de “rastreio (cônjuge)”.
Outro documento obtido pela reportagem revela que servidores do MJSP chegaram até a discutir a criação de “um alerta quando o policial rastrear o veículo da esposa, considerando os crimes de violência doméstica” no Brasil.
Um total de 108 órgãos municipais e estaduais, como secretarias de Fazenda, de Segurança Pública e de Trânsito, tem acesso à plataforma Córtex por meio de APIs (em inglês, Application Programming Interface), uma funcionalidade que permite a integração de sistemas de informação.
Quando a API é usada, o MJSP em Brasília (DF) pode até saber qual órgão está conectado ao Córtex em determinado momento, mas o controle sobre o uso do sistema fica a cargo dos próprios órgãos com acesso.
Por meio de documentos do MJSP, a Pública apurou que durante o governo Bolsonaro e pelo menos até março de 2023 também detinham a ferramenta API no Córtex:
o setor de inteligência do Exército
o Centro Gestor e Operacional do Sistema de Proteção da Amazônia (Censipam), ligado ao Ministério da Defesa
o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP)
o Ministério Público Federal (MPF), entre outros órgãos.
Todos os 49 órgãos que integram o Sistema Brasileiro de Inteligência (Sisbin) também possuem acesso ao Córtex, incluindo:
a Agência Brasileira de Inteligência (Abin)
a Polícia Federal (PF)
a Polícia Rodoviária Federal (PRF)
o Gabinete de Segurança Institucional (GSI).
O MJSP reconheceu à reportagem que, além das imagens de câmeras de rua, o Córtex dá acesso a dados de veículos, cadastros de pessoa física na Receita Federal, cadastros de embarcações e condutores, restrições judiciais e base nacional de carteiras de habilitação.
Contudo, um documento obtido pela Pública sugere que essa informação oficial está incompleta.
Um ofício assinado em 18 de junho passado pela diretora de Gestão e Integração de Informações do ministério, Vanessa Fusco Nogueira Simões, revela que “as bases de dados internalizadas no Córtex” incluem outros dados sensíveis não mencionados na resposta do MJSP.
O ofício do MJSP lista a Relação Anual de Informações Sociais (Rais), que contém vencimentos salariais de milhões de pessoas empregadas no Brasil; o Cadastro do Sistema Único de Saúde (Cadsus), com dados sigilosos de pacientes do SUS; e informações não especificadas sobre autoridades em geral qualificadas como Pessoas Expostas Politicamente (PEPs).
O MJSP trabalha para ampliar ainda mais a base do Córtex, agregando dados obtidos por prefeituras, governos estaduais e até concessionárias de serviço público. Para isso, tem estabelecido parcerias.
Para que prefeituras, governos estaduais e outros órgãos tenham acesso irrestrito ao Córtex, basta que deem uma “contrapartida”, ou seja, o acesso a bases de dados que eles já possuem. São então assinados entre o MJSP e a outra parte Acordos de Cooperação Técnica (ACTs), que, em muitos casos, deram acesso ao Córtex para guardas civis e servidores de órgãos fora do Sistema Único de Segurança Pública.
Até março de 2023, o MJSP havia firmado 184 ACTs em todo o país. Outras 191 propostas de acordo aguardavam pareceres e despachos de diferentes setores da pasta. Após seguidas negativas, somente depois de um recurso protocolado na CGU o ministério disponibilizou à Pública cópias dos acordos assinados com estados e municípios.
Os ACTs mostram que prefeituras alimentam as bases do Córtex com dados diversos, como informações “em tempo real da bilhetagem dos ônibus”, incluindo “CPF e Nome [dos passageiros], Linha e Prefixo [dos ônibus], Data e Hora da Leitura [dos cartões de embarque], Latitude e Longitude [dos ônibus em trânsito]”.
Os documentos dos ACTs sugerem contradições entre compromissos já assinados e o que foi informado pelo MJSP à Pública. Foi assinado, por exemplo, um acordo entre a pasta e os secretários estaduais de Fazenda, Receita, Economia, Finanças ou Tributação de todos os estados mais o Distrito Federal “visando o intercâmbio de informações” e acesso ao Córtex.
O ministério disse à reportagem, porém, que apenas três secretarias estaduais de Fazenda – dos governos de Alagoas, Paraíba e Acre – compartilham seus dados com o Córtex. O MJSP alegou sigilo para não explicar o conteúdo das informações recebidas das secretarias de Fazenda.
Como ministro, Moro comemorou sistema de vigilância
Herdado do governo de Michel Temer (2016-2018), quando ainda operava pontualmente, o Córtex passou a ser usado em larga escala durante o mandato do ex-presidente Jair Bolsonaro (2019-2022), nas gestões dos ex-ministros Sergio Moro (2019-2020), André Mendonça (2020-2021) e Anderson Torres (2021-2022).
O MJSP formalizou o uso do Córtex no seu atual formato em 2021, na gestão de Torres.
Antes, em setembro de 2019, na gestão de Moro, hoje senador pelo União Brasil, já existia um sistema com esse nome, conforme o ex-juiz divulgou naquele mês em sua conta no antigo Twitter: “A unificação dos sistemas de monitoramento viário Alerta Brasil 3.0 da PRF e Córtex da Seopi, ambos do MJSP, levará à redução de custos e a [sic] criação de um sistema integrado com seis mil pontos de monitoramento no país”.
O número de câmeras conectadas ao Córtex aumentou desde então. Em 2021, dois anos após o tuíte de Moro, o sistema já tinha acesso a 26 mil equipamentos espalhados pelo Brasil. Hoje, o número chega a quase 36 mil.
Documentos obtidos pela Pública e variadas fontes com acesso ao sistema, ouvidas sob a condição de anonimato, confirmam que o Córtex é capaz de monitorar o deslocamento em tempo real de veículos e pessoas, além de emitir “alertas de inteligência para alvos de interesse”. Há diversas referências a “alvos móveis”.
O monitoramento se assemelha às capacidades do programa First Mile, foco de um escândalo na Agência Brasileira de Inteligência (Abin) após a descoberta de que ele consegue acompanhar, em tempo real, usuários de telefones celulares.
O Córtex do MJSP acompanha veículos, em vez de telefones, mas o efeito prático é semelhante: os usuários da plataforma têm a capacidade de saber onde e quando uma pessoa esteve ou por quais ruas e avenidas passou ou costuma passar, bastando reconstituir seu trajeto por meio das câmeras.
Consultas ao sistema podem ser feitas apenas pela placa do carro. As câmeras instaladas em ruas, avenidas e rodovias conseguem “ler” os caracteres das placas e indicar exatamente por onde o veículo passou ou costuma passar em determinado dia ou hora.
“Processo permanente de vigilância”, diz especialista
Sem apresentar todos os detalhes sobre o caso concreto, a reportagem ouviu especialistas sobre os riscos inerentes ao avanço de um sistema de vigilância tão poderoso quanto o Córtex.
“O Córtex dá a possibilidade de nos submeter a um processo permanente de vigilância, identificando todas as vezes que você entra e sai de uma rodovia ou de um shopping center, como se alega que ele seja capaz de fazer. Na prática, nossa presunção de inocência é totalmente ignorada”, disse à Pública Rafael Zanatta, diretor da Associação Data Privacy Brasil de Pesquisa, especializada em direitos digitais.
“Um dos problemas do Córtex é que, do ponto de vista de estratégia de integração e de segurança pública, ele tem uma cara de política pública robusta, mas sua parte normativa é precária”, afirmou Zanatta.
O desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) Marcelo Semer disse à Pública em teoria, sem conhecer o caso concreto, que “a consolidação de um projeto de vigilância total deve ser vista com cuidado, pois a reunião irrestrita de dados pessoais pode gerar uma situação de compressão absoluta da privacidade e pode ser utilizado para diversos fins, nem todos lícitos”.
Semer, doutor em criminologia e mestre em direito penal pela Universidade de São Paulo (USP), mencionou uma recente investigação da Polícia Federal (PF). Em 2023, a PF descobriu que criminosos da facção PCC usaram um sistema da polícia de São Paulo para localizar um carro descaracterizado da própria Polícia Civil.
“É preciso transparência acerca dos protocolos, até para impedir que dados que estejam sujeitos à reserva de jurisdição não sejam obtidos sem ela nem sejam compartilhados com empresas para fins próprios”, disse o desembargador.
Vigilância sobre alvos “com ou sem restrições”
A plataforma Córtex recebe imagens geradas dia e noite por 35,9 mil câmeras espalhadas em rodovias e zonas urbanas, as que registram entradas e saídas em estádios de futebol, fluxo em rodovias federais, entre outros lugares.
Graças à função de alertas programados do Córtex, os usuários podem marcar determinada pessoa ou veículo e serem avisados, em tempo real, em caso de avistamento ou atividade ligada ao “alvo”.
O Córtex consegue vigiar 24 horas por dia, sete dias por semana, pessoas e veículos “com ou sem restrições”, conforme os acordos firmados pelo MJSP com órgãos públicos.
Nas prefeituras e estados, o Córtex é mais uma entre outras ferramentas que também possuem “câmeras inteligentes”, isto é, capazes de “ler” os caracteres das placas de carros e monitorar carros e pessoas. Formou-se uma verdadeira indústria em torno do tema, com empresas privadas montando e vendendo os sistemas para as prefeituras.
No interior de São Paulo, destaca-se a empresa Sentry, que se apresenta na internet como “a verdadeira criadora da Muralha Eletrônica”. Um programa com nome semelhante, que repete o modelo do Córtex, é um carro-chefe do governador Tarcísio de Freitas no campo da segurança pública – a chamada Muralha Paulista.
O coordenador da Guarda Civil Metropolitana de Cordeirópolis (SP), Leonardo Maximiliano, explicou à Pública, durante um seminário sobre segurança pública realizado em junho passado em Brasília, como funcionam as “câmeras inteligentes” no dia a dia do município. Ele disse que são instrumentos eficazes no combate ao crime.
“A gente detecta carros clonados até no Acre, até no Amazonas, onde tiver o sistema funcionando. Por exemplo, você tem um carro com uma determinada placa rodando num lugar e a mesma placa rodando em outro. Se eles vão passar por uma câmera inteligente num curto espaço de tempo, o sistema já parametriza. ‘Peraí, essa placa está lá e aqui?’ E manda um alerta automático”, disse o coordenador da Guarda Civil de Cordeirópolis.
Segundo Maximiliano, o sistema da Sentry integra “mais de 140 cidades” no país, incluindo Curitiba (PR), Manaus (AM), Vitória (ES) e Rio de Janeiro (RJ). “É um software que está ganhando espaço. Eu posso cadastrar para [receber] um alerta. Se esse carro passar na minha cidade por uma câmera inteligente, ele vai me dar um alerta. […] O sistema tem um caráter preventivo muito forte. A gente identifica os veículos, as ações, e encaminha para o Judiciário. Então, assim, [hoje] é o carro-chefe de qualquer cidade”, disse Maximiliano.
Conforme o coordenador da Guarda Civil, o Córtex “ajuda muito”, principalmente com imagens captadas nas rodovias federais.
À Pública, a Sentry confirmou sua atuação em mais de 130 municípios e nove capitais. A empresa disse que seu sistema “tem como objetivo realizar a ‘análise comportamental’ do deslocamento dos veículos”.
“Quando a câmera identifica o veículo e faz a leitura da placa, automaticamente essa informação chega para o sistema, que realiza através de inteligência artificial e algoritmos a identificação desse veículo. Tendo essa identificação, o sistema tem uma integração com bancos de dados de órgãos públicos”, afirmou à reportagem o setor de marketing da empresa. “A gente consegue, por exemplo, vincular o nosso sistema à iniciativa público-privada, em escolas, universidades, comércios. Porém, o ‘passo inicial’ é sempre feito pelas prefeituras porque é necessário que a cidade possua o sistema para que a gente consiga replicar”, disse a Sentry.
Inteligência do MJSP quer ampliar suas bases de dados
Preocupa aos especialistas o fato de o Córtex ser apenas a ponta do iceberg, pois o MJSP já mantém uma miríade de bases de dados sensíveis em seu poder, além de criar novas ferramentas.
A Pública apurou que o governo trabalha, desde o ano passado, para formar uma plataforma ainda mais poderosa, denominada Orcrim (Sistema Nacional de Inteligência para Enfrentamento ao Crime Organizado), na qual o Córtex seria inserido como apenas uma das peças.
Na futura base Orcrim, segundo documentos obtidos pela reportagem, estariam relatórios de inteligência financeira do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), ligado ao Ministério da Fazenda, e um sistema chamado de Projeto Excel – já tratado em reportagem do site The Intercept Brasil –, que agrega e disponibiliza dados extraídos de aparelhos eletrônicos como telefones celulares de investigados e réus em processos e inquéritos criminais no país.
O sistema Orcrim foi institucionalizado por uma portaria assinada por Sergio Moro em março de 2020. Em 2023, o governo Lula anunciou que o Orcrim integra um programa de enfrentamento às organizações criminosas orçado em R$ 900 milhões.
Sistemas ficam no âmbito da “inteligência” do ministério
Tanto no Córtex quanto no Orcrim, esse grande conjunto de informações sensíveis fica sob a administração da Diretoria de Operações Integradas e de Inteligência (Diopi), subordinada à Secretaria Nacional de Segurança Pública do MJSP.
Até janeiro de 2023, o principal braço da Diopi era a Secretaria de Operações Integradas (Seopi). Foi nesse setor que o ministério produziu, em 2020, os relatórios contra 579 policiais e professores antifascistas. Acionado na época pela oposição ao governo Bolsonaro, o Supremo Tribunal Federal (STF) declarou ilegal a fabricação de tais dossiês.
Quatro anos depois, a Pública confirma que a produção dos relatórios de inteligência foi uma prática generalizada e intensa no MJSP, com uso de ferramentas como o Córtex e o Excel, entre outras.
O ministério produziu 6.841 relatórios de 2015 a 2023 que, por meio de uma manobra conceitual da pasta, caíram em “sigilo eterno” – ou seja, sem prazo definido para que um dia venham a público. Desse total, 66% foram produzidos durante os quatro anos do governo Bolsonaro.
O Infoseg, um sistema público sigiloso que reúne informações de órgãos de segurança pública de todo o País, foi usado de forma irregular para obtenção de dados do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), de delegados de polícia e de um empresário, com o objetivo de divulgar as informações na internet e constranger as vítimas dos vazamentos.
A informação foi divulgada nesta quarta-feira 11 pela jornalista Letícia Casado, do site UOL. Na reportagem ela traz detalhes da operação ilegal, que pode ter tido participação direta de agentes públicos (como policiais militares e civis de diferentes estados, agentes da Polícia Federal, do Ministério Público e até mesmo um juiz) e de hackers.
A investigação sobre o caso culminou, segundo a reportagem, na suspensão da rede social X (antigo Twitter), de propriedade de Elon Musk. A decisão de Alexandre de Moraes no último dia 30 de agosto foi referendada na sequência pela Primeira Turma do STF. Os dados de Moraes estão entre os mais visados. Houve acessos em nome de servidores de diferentes regiões do País em busca de informações pessoais do ministro.
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“A investigação demonstrou a participação criminosa e organizada de inúmeras pessoas para ameaçar e coagir delegados federais que atuam ou atuaram nos procedimentos investigatórios contra milicias digitais e a tentativa de golpe de Estado. As redes sociais — em especial a ‘X’ — passaram a ser instrumentalizadas com a exposição de dados pessoais, fotografias, ameaças e coações dos policiais e de seus familiares”, destacou Moraes na sentença que bloqueou a rede social de Elon Musk, em trecho citado pela reportagem do UOL.
Os investigadores avançaram após relato de ameaça do delegado Fábio Shor, que atua em inquéritos envolvendo o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e seus aliados. Foram identificados acessos de 25 agentes públicos ao Infoseg para obtenção ilegal de dados. Não há certeza, por enquanto, se foram os próprios servidores ou se eles foram vítimas de hackers que roubaram dados de acesso ao sistema.
A PF identificou, em março deste ano, uma articulação via redes sociais batizada de “Exposed” (termo usado para citar exposição de dados de determinada pessoa na internet). Entre os envolvidos estava o bolsonarista Allan dos Santos, que está foragido. Os alvos, no caso, eram agentes que cumpriam ordens despachadas pelo gabinete de Moraes no Supremo.