Os policiais militares que aparecem em um vídeo cantando uma música e dançando ela em exaltação ao 'Massacre do Carandiru' dentro do quartel da cavalaria da Polícia Militar (PM) em São Paulo são alunos do curso de formação de soldados da corporação (veja acima). A informação foi confirmada nesta segunda-feira (10) à reportagem pela assessoria de imprensa da PM.
O 'Massacre do Carandiru' é o episódio pelo qual ficou conhecida a invasão da Polícia Militar (PM) em 2 de outubro de 1992 para conter uma rebelião de presos na Casa de Detenção da Zona Norte de São Paulo. O local era conhecido como Carandiru. No total, 111 detentos morreram após atuação dos policiais militares.
Entre 2013 e 2014, a Justiça paulista fez cinco júris populares e condenou, ao todo, 74 policiais militares pelos assassinatos de 77 detentos. Os outros 34 presos teriam sido mortos pelos próprios companheiros de cela.
As defesas dos agentes alegam que seus clientes são inocentes, agiram em legítima defesa porque os presos estariam armados com revólveres e facas e só cumpriram ordens superiores para entrar no local. Vinte e dois policiais ficaram feridos na ação, mas nenhum deles morreu.
Para o Ministério Público (MP), no entanto, os policiais executaram detentos que já estavam rendidos. Todos os PMs condenados recorrem da decisão judicial em liberdade.
A letra da canção entoada pelos jovens alunos do curso de soldados no regimento de Policia Montada 9 de Julho da Polícia Militar enaltece a ação dos colegas de farda que invadiram o Carandiru e mataram os presos. Na música, os novatos xingam os detentos mortos, dizem que os PMs que os mataram tinham ordem para executá-los.
Há ainda refrões que citam que bombas, facas, tiros e granadas foram usadas contra os presos. E que depois disso o que restou foram corpos dos presidiários e suas cabeças decepadas.
Veja abaixo parte dos versos da música:
- "Lá só tinha lixo, a escória, na moral";
- "Foi dado ‘pista quente’ para derrubar geral";
- "Bomba, facada, tiro e granada";
- "Corpos mutilados e cabeças arrancadas";
- "A minha continência, Coronel Ubiratan".
PMs cantam música de exaltação ao Massacre do Carandiru em SP — Foto: Reprodução/TikTok
A filmagem feita recentemente pelos alunos da Escola Superior de Soldados foi compartilhada nas redes sociais. E depois viralizou, gerando críticas de entidades e movimentos ligados aos direitos humanos.
Claudinho Silva, ouvidor das polícias em São Paulo, apontou que, assim que tomou conhecimento do material, determinou a abertura de um procedimento na Ouvidoria e acionou a Corregedoria da PM para o órgão identificar os agentes e "tomar as providências necessárias e cabíveis."
Diante da repercussão negativa do vídeo com os alunos da PM, a Secretaria da Segurança Pública (SSP) informou que, assim que tomou conhecimento da filmagem, determinou a instauração de uma investigação por meio do Comando do Policiamento de Choque da Polícia Militar (CPC-PM).
A pasta ainda afirmou que a conduta dos policiais que aparecem nas imagens "não condiz com as práticas da instituição" e que "medidas cabíveis serão tomadas".
O vídeo começa com um grito de guerra: "Cavalaria Brasil!". Em seguida, um homem identificado como soldado Breno passa a liderar o coro, que é repetido em conjunto por cerca de 20 militares, que batem palmas e sorriem enquanto cantam.
Letra da música
"Cavalaria Brasil
Esquerda, ô
Esquerda, direita, Choque!
Hoje eu te apresento o 1º Batalhão
Aquele que acalmou a Casa de Detenção [Carandiru]
1992, logo pela manhã, o clima já era tenso
A caveira já estava sorrindo para o detento
Lá só tinha lixo, a escória, na moral
Foi dado ‘pista quente’ para derrubar geral
Bomba, facada, tiro e granada
Corpos mutilados e cabeças arrancadas
O cenário é de guerra, tipo Vietnã
A minha continência, Coronel Ubiratan
Vibra, ladrão, sua hora vai chegar
Escola de Choque tá saindo pra caçar"
Curso de formação de PMs
Os policiais que aparecem no vídeo exaltando o massacre do Carandiru estavam em uma formatura do curso de formação de soldados, onde eles são alunos.
O curso de formação de praças da PM de São Paulo tem duração de dois anos e duas fases. Na primeira, os novos agentes passam por seis meses de formação básica e seis meses de formação específica, feitas dentro da escola de praças.
Na segunda, o policial passa por mais 12 meses de estágio supervisionado, mas agora em um batalhão e já atuando nas ruas —é esta fase que os agentes filmados estão.
Ao fim de todo o curso, eles são efetivados, mas, durante todo o período, eles já são considerados policiais e recebem honorários do Estado.
Os especialistas em segurança pública divergem quanto às possíveis infrações que podem ter sido cometidas pelos policiais do vídeo e quais as possíveis punições.
Há quem considere que os agentes infringiram regras do Regulamento Disciplinar da PM, como o dever de “observar os direitos e garantias fundamentais, agindo com isenção, equidade e absoluto respeito pelo ser humano”.
Ou ainda a nova regra da PM, de 2022, para uso das redes sociais, que proíbe a divulgação de informações referentes a ações em que houve intervenção policial e a publicação de imagens relacionadas direta ou indiretamente com a condição de militar.
Os policiais também podem responder por apologia e incitação a ato criminoso, previsto no Código Penal, com pena de detenção de três a seis meses.
Já outros especialistas afirmam que dificilmente os policiais serão punidos.
“Tais comportamentos deviam ser reprovados publicamente pelo Comandante da PM, pelo secretário de Segurança e pelo governador. Devem ser reprovados porque são incompatíveis com os valores do Estado Democrático de Direito. Mas não vejo como punir os policiais individualmente. Pode-se punir o oficial que comanda a tropa removendo-o do cargo. Nesse caso, destituindo o diretor da academia de polícia do cargo”, afirma Luis Flávio Sapori, pesquisador e coordenador do Centro de Estudos em Segurança Pública da Pontifícia Universidade Católica (PUC).
Condenação de militares
Dos 74 agentes condenados na Justiça pelo 'Massacre do Carandiru', cinco morreram e atualmente 69 deles continuam vivos. Mais de 30 anos depois, ninguém foi preso. Os PMs foram punidos com penas que variam de 48 anos a 624 anos de prisão. Pela lei brasileira, ninguém pode ficar preso mais de 40 anos por um mesmo crime. Apesar disso, todos os agentes condenados respondem pelos crimes de homicídio em liberdade.
Indulto de Natal
O ex-presidente Jair Bolsonaro, em imagem de 25 de março de 2024 — Foto: Amanda Perobelli/Reuters
Em dezembro de 2022, o então presidente Jair Bolsonaro (PL) assinou um decreto que concedeu indulto a policiais condenados, ainda que provisoriamente, por crime praticado há mais de 30 anos e que não era considerado hediondo à época.
Membros do Ministério Público de São Paulo que atuaram no julgamento do 'Massacre do Carandiru' entendem que o indulto beneficia os PMs condenados pelas 111 mortes ocorridas em outubro de 1992 (há mais de 30 anos, portanto). Como o indulto não é automático, cabe à defesa dos policiais acionar a Justiça.
Agora, o Supremo Tribunal Federal (STF) deve julgar a constitucionalidade do indulto concedido em 2022. Os efeitos do decreto estão suspensos desde janeiro de 2023, quando a então presidente do STF, Rosa Weber, acolheu uma ADI (ação direta de inconstitucionalidade) ajuizada pelo ex-procurador-geral da República Augusto Aras.
Coronel Ubiratan
Coronel Ubiratan Guimarães foi condenado e depois absolvido — Foto: Reprodução/TV Globo
O tenente-coronel Ubiratan Guimarães, que comandou as tropas da PM durante o 'Massacre do Carandiru', chegou a ser condenado pela Justiça, em 2001, a 632 anos de prisão pelos assassinatos de 102 presos.
Em 2006, no entanto, Ubiratan se tornou deputado estadual pelo PTB e passou a ter foro privilegiado. Julgado naquele ano pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP), ele foi absolvido. Os magistrados consideraram que o então PM não participou da ação.
Ubiratan foi assassinado em 2006, dentro do seu apartamento. Uma namorada dele foi acusada de envolvimento no crime, mas foi absolvida pela Justiça.