O segredo em torno do grampo instalado na cela do doleiro Alberto Youssef voltou a mostrar como funcionários da base do sistema de Justiça, da Polícia Federal e do Ministério Público, turbinados pela opinião pública, conseguiram submeter Brasília à rebelião da “lava jato”.
Parte do mistério que havia sobre o caso foi revelado nesta quinta-feira (21/11), com a decisão do ministro Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal, de retirar o sigilo das escutas ilegais. Se ainda havia dúvidas a respeito do grampo, agora é possível acessar o material.
O HD com os áudios foi ocultado das investigações durante dez anos, desde 2014, quando a escuta foi encontrada. Nesse período, delegados deixaram de obedecer ordens de juízes para informar onde estava o conteúdo do grampo, o MPF fez de conta que não havia escuta e Sergio Moro, ex-fiador da “lava jato”, omitiu o fato de que o material estava o tempo todo escondido na 13ª Vara Federal de Curitiba, da qual ele era o juiz titular.
As provas forjadas deram origem ao esquema da “lava jato” e serviram para fundamentar processos contra um sem-número de políticos e empresários. A farsa demorou para ser desmontada e a decisão de Toffoli é mais um capítulo que possibilita revisitar os métodos da “lava jato”.
Antes da derrocada, no entanto, funcionários dos fórum, da polícia e do MP, empoderados pelo pretenso discurso do combate à corrupção, que caiu nas graças da mídia, tiveram temporariamente mais poder do que o presidente da República, do que os ministros do STF e do que os titulares do Legislativo. Brasília estava de cabeça para baixo.
Regime do poder visível
Segundo o ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal Celso de Mello, presidente da corte entre 1997 e 1999, dar publicidade aos grampos ilegais corrige uma distorção comum em tempos de “lava jato”, que era privilegiar o mistério em vez de efetivar o princípio constitucional da publicidade.
“Tenho por absolutamente correta e necessária a decisão com que o Ministro Dias Toffoli deu concreta efetivação ao princípio constitucional da publicidade! Sempre enfatizei, em julgamentos proferidos no Supremo Tribunal Federal, que os estatutos do poder numa República fundada em bases democráticas não podem privilegiar o mistério, porque a supressão do regime visível de governo — que tem na transparência a condição de legitimidade dos próprios atos — sempre coincide com tempos sombrios e com o declínio das liberdades fundamentais!”, disse o ministro.
Leia a seguir a íntegra da manifestação do ministro Celso de Mello:
“Tenho por absolutamente correta e necessária a decisão com que o Ministro Dias Toffoli deu concreta efetivação ao princípio constitucional da publicidade!
Sempre enfatizei, em julgamentos proferidos no Supremo Tribunal Federal, que os estatutos do poder numa República fundada em bases democráticas não podem privilegiar o mistério, porque a supressão do regime visível de governo — que tem na transparência a condição de legitimidade dos próprios atos — sempre coincide com tempos sombrios e com o declínio das liberdades fundamentais!
Nos modelos políticos que consagram a democracia — que é, por excelência, o regime do poder visível — não há espaço possível reservado ao mistério, como autorizadamente adverte Norberto Bobbio!
A decisão do Ministro Toffoli, ao acertadamente levantar o sigilo do HD em questão, após tantas idas e vindas, revela-se de significativa importância, pois, segundo entendo, o estatuto político brasileiro — que rejeita o poder que oculta e que não tolera o poder que se oculta — consagrou a publicidade como expressivo valor constitucional, incluindo-o, tal a magnitude desse postulado, no rol dos direitos, das garantias e das liberdades fundamentais!”.
Anulações
O constitucionalista Georges Abboud também considera acertada a decisão de Toffoli. De acordo com ele, retirar o sigilo das escutas é “mais um episódio da atuação corajosa do STF” contra a herança autoritária do lavajatismo.
“É mais uma evidência de que, além de deliberadamente cercear defesas, violar direitos dos presos e atuar em conjunto, a 13ª Vara Federal de Curitiba e setores do MPF simulavam investigações e se valiam de táticas escusas para obter informações dos investigados, o que criava uma assimetria informacional total e uma completa impossibilidade da defesa plena.”
Segundo ele, uma consequência possível da decisão é a anulação de provas e, por consequência, de condenações pelo Supremo. Isso porque a delação de Youssef, agora sob risco, foi um dos pilares da “lava jato” e serviu para basear diversas acusações.
Processos contra empreiteiros de OAS, UTC Engenharia, Camargo Corrêa e Queiroz Galvão, por exemplo, usaram “provas” obtidas na delação do doleiro.
E não são só casos recentes os afetados: no último dia 14, o Supremo manteve a condenação do ex-presidente Fernando Collor a oito anos e dez meses de prisão por corrupção passiva e lavagem de dinheiro. A corte entendeu ter ficado provado que Collor recebeu R$ 20 milhões de propina para conseguir que a construtora UTC obtivesse contratos com a BR Distribuidora. Boa parte das provas do caso se baseia na delação de Youssef.
“Entre as tantas consequências que podem advir desses novos fatos, duas parecem, no momento, as mais importantes. Em primeiro lugar, uma nova onda de anulação de provas e condenações pelo STF, e, em segundo, um olhar mais rígido com relação às investigações internas levadas a cabo pelo MPF”, diz Abboud.
HD escondido
O HD com os áudios gravados foi ocultado de investigações durante dez anos. Delegados da PF não obedeceram a ordem dos juízes Eduardo Appio e Luiz Antônio Bonat que determinaram a entrega do HD. Mas não foram apenas os delegados e os procuradores do MPF quem sonegaram as provas da ilegalidade.
Na verdade, o HD estava acautelado na própria 13ª Vara Federal de Curitiba — o que os servidores da vara esconderam dos juízes, do Conselho Nacional de Justiça e do Supremo Tribunal Federal. O HD, que teve 26 arquivos apagados, com 210 horas de gravações, só foi liberado quando assumiu o comando da vara o juiz Guilherme Borges.
Há indícios de que existe uma versão integral, em que foram filtrados ruídos — já que os áudios originais são precários. O material que finalmente foi entregue à defesa neste ano, em sua maior parte, é quase inaudível.
O então juiz Sérgio Moro foi quem arquitetou, desde o início, o plano para esconder da Justiça o crime dos delegados. Ele recebeu o HD, mas, oficialmente, devolveu-o à PF. Em vez de abrir inquérito (que abriria espaço para a defesa acompanhar o caso), Moro abria sindicâncias, a que só a quadrilha lavajatista teria acesso.
Reação em cadeia
Esses fatos acabam de vir à tona com a decisão do ministro Dias Toffoli de levantar o sigilo do HD, que, finalmente, apareceu.
O ministro deu ciência da trama e do HD ao CNJ; à Procuradoria-Geral da República; à direção da Polícia Federal; à Advocacia-Geral da União; à Controladoria-Geral da União; ao Tribunal de Contas da União; ao Ministério da Justiça; e à presidência do Senado para providências necessárias.
A decisão também levanta o sigilo da petição (Pet 13.045) na qual a defesa de Youssef pediu a investigação da atuação do hoje senador Sergio Moro (União-PR) na instalação do grampo. Moro recebeu o HD logo depois das gravações, que duraram 11 dias (de 17 a 28 de março de 2014). O material entrou para a história como certidão de nascimento do esquema engendrado em Curitiba.
Os autos mostram que o Ministério Público Federal simulou uma investigação sobre os cinco delegados e um agente da PF, em uma sindicância sobre a instalação do grampo. Agindo como uma organização criminosa, no entanto, o grupo “concluiu” que não houve qualquer irregularidade, nem prática de crime — e pediu o arquivamento da investigação em 2018. Apenas o agente que instalou o grampo foi punido.
Dormindo com o inimigo
Os delegados Maurício Fanton e Alfredo Junqueira, este da corregedoria da PF em Brasília, chegaram perto de desmascarar as manobras. Mas seus próprios subordinados, assim como aconteceu com os funcionários da 13ª Vara, sabotaram os trabalhos para proteger o esquema.
Foram abertas duas sindicâncias (04/14 e 04/15), inconclusivas — para que os procuradores da República pudessem arquivá-los. No ano seguinte, a 13ª Vara Federal, já sob o comando do então juiz Luiz Antônio Bonat (hoje desembargador do Tribunal Regional Federal da 4ª Região), ratificou a farsa.
Segundo as apurações colacionadas aos autos na decisão de Toffoli, não há dúvidas quanto à tramoia engendrada para esconder o crime praticado na Superintendência da PF na capital paranaense em 2014, com uso de equipamentos pertencentes à União.
No ano passado, para impedir nova investigação pedida pela defesa de Alberto Youssef, determinada por Appio, da 13ª Vara, os delegados da PF responderam que não obedeceriam a ordem. Em atitude curiosa, o delegado Márcio Anselmo ajuizou pedido de Habeas Corpus para trancar a investigação, representado pelo advogado Nelson Wilians.
Manobras ilegais
À época em que o grampo foi encontrado, Youssef ainda se recusava a colaborar com as investigações da “lava jato”. Na ocasião, a PF alegou que a escuta era antiga e estava desativada.
No início da autodenominada força-tarefa, o doleiro foi apontado como operador financeiro de um esquema de desvios na Petrobras. Ele foi condenado em diversas decisões, mas teve sua pena reduzida porque aceitou relatar sua participação nas irregularidades. Assim, tornou-se o delator mais importante da “lava jato”.
Advogados ouvidos pela revista eletrônica Consultor Jurídico confirmam que, após a instalação da escuta, todos os presos da “lava jato” eram encaminhados para a cela de Youssef. O objetivo era usar qualquer menção a pessoas ou empresas para justificar pedidos de busca e apreensão, quebra de sigilos ou prisões.
O criminalista Figueiredo Basto, que comanda a defesa de Alberto Youssef ao lado de Gustavo Flores e Giovana Menegolo, diz que as gravações violaram direitos dos presos.
“A escuta clandestina foi plantada pela PF na cela antes da chegada de Youssef. Obviamente, a intenção era burlar os direitos do presos, obter áudios das conversas e usá-los nas investigações contra eles. Todos os presos eram encaminhados para a mesma cela.
Na perícia da PF, está clara a captação de vozes de outros presos da ‘lava jato’. Os abusos foram muitos, desde a interceptação clandestina, ameaças de transferências para penitenciárias com piores condições, como fizeram com (o ex-diretor da Petrobras) Paulo Roberto Costa, e até a fraude de uma investigação por tráfico de drogas, usada para iludir o ministro Teori Zavascki.”
O advogado Eduardo Sanz também destaca o fato de que alvos eram presos para serem gravados a cela de Youssef (a Cela n° 5) para que os investigadores obtivessem informações. Ele também diz ser preciso apurar “a fundo” todas as ilegalidades que foram usadas para implicar, sem fundamento material, um grande número de vítimas.
Entre os presos da “lava jato” que foram gravados com a escuta na cela de Youssef estão Carlos Alberto Pereira da Costa, Carlos Alexandre de Souza Rocha, Nelma Kodama e André Catão, conforme laudo da PF.
Figueiredo Basto diz que a decisão de Toffoli é “histórica”. “Depois de dez anos de luta, conseguimos finalmente provar as ilegalidades e abusos cometidos nas entranhas da ‘lava jato’”. Segundo o advogado, a ordem do ministro do STF “demonstra a urgência de se deitar por terra toda a farsa engendrada pela relação incestuosa entre a força-tarefa e Sergio Moro”.
“A decisão é corajosa pois enfrenta uma matilha raivosa cujos uivos ecoam pelo Judiciário, Ministério Público e Polícia Federal, gente egoísta com aspirações altruístas, que engendraram abusos com propósitos particulares. Esses são os verdadeiros sepulcros caiados, os tais doutores da lei, que batem no peito e gemem contra a corrupção, mas são piores do que os que acusam e condenam fora do devido processo legal. A decisão demonstra a urgência de se deitar por terra toda a farsa engendrada pela relação incestuosa entre a Força Tarefa e Sergio Moro”, afirma Figueiredo Basto.
“Durante anos manobraram a investigação, impedindo que a defesa tivesse acesso às fraudes que foram perpetradas para acobertar a escuta clandestina. A decisão do ministro Tofolli consagra as garantias individuais. E é uma advertência para o Estado, que não pode ter dentro de seus quadros pessoas que cometem abusos em nome de ideologias”, completa ele.