Uma quadrilha formada por empresários, advogados, agentes penitenciários e laranjas é alvo de investigação do Ministério Público do Rio (MPRJ) que apura a formação de um cartel para controlar cantinas que funcionavam dentro dos presídios do Rio. Parte do esquema era um emaranhado de empresas que atuavam em conluio para dominar os contratos de permissão de uso das lanchonetes. De acordo com apuração dos promotores do Grupo de Atuação Especial no Combate ao Crime Organizado (Gaeco), a máfia das cantinas também tinha um setor jurídico responsável por mover uma enxurrada de processos e criar imbróglios jurídicos para impedir licitações — e, assim, garantir o monopólio do serviço a partir de seguidas contratações emergenciais.
A investigação do Gaeco teve início a partir de apuração interna da Secretaria de Administração Penitenciária (Seap). Um relatório produzido pela Subsecretaria de Inteligência e entregue à Promotoria aponta que o agente penitenciário Adinei Alves dos Santos operava a maior parte das cantinas dos presídios do Rio até fevereiro de 2019, data de sua morte. O serviço era prestado por meio da empresa Romulo e Ana Comércio de Alimentos, que tinha entre seus sócios Ana Maria Rodrigues dos Santos, mulher do agente. Como não eram feitas licitações, a cantina era explorada através de seguidos termos de permissão de uso.
Vínculo com agente morto
Na época, a atuação de parentes de agentes penitenciários em cantinas já era alvo do Tribunal de Contas do Estado (TCE-RJ): em 2018, o conselheiro Christiano Lacerda Ghuerren determinou que a Seap apurasse “situações em que servidores possuem parentes figurando como permissionários ou prepostos na exploração comercial de cantinas e, caso comprovado o vínculo, aplique as devidas sanções aos responsáveis, revogando-se, ainda, as respectivas permissões de uso”. No entanto, segundo a inteligência da Seap, mesmo após a morte de Santos, seus parentes seguiram no negócio.
A partir de 2020, grande parcela das cantinas passou a ser controlada pela empresa Winefood Distribuidora de Alimentos e Bebidas — que hoje está no centro da investigação do Gaeco sob suspeita de ter como verdadeiro dono um parente do agente penitenciário morto. A inteligência da Seap descobriu que a única sócia da empresa consta como empregada em outra firma da família.
A Winefood não era a única: outras empresas que exploraram o serviço das cantinas ou apresentaram propostas à Seap nos últimos anos também tinham vínculo com parentes do agente morto. É o caso da D’Casa Comércio de Alimentos e Bebidas e da Gamer & Beer Ltda, cujos donos são ou foram sócios da família em outros empreendimentos; e da L&F Comércio, cujo telefone cadastrado na Receita Federal é o mesmo da D’Casa Comércio de Alimentos e Bebidas. O Gaeco investiga se essas e outras firmas formaram um cartel. De acordo com a Promotoria, as empresas envolvidas no esquema causaram prejuízo de mais de R$ 25 milhões aos cofres do estado, valor referente a locações não pagas pelo uso das cantinas. O Procedimento Investigatório Criminal (PIC) também apura crimes de organização criminosa e fraude a licitação.
Uma ação coordenada do grupo para impedir que a Seap licitasse o serviço também é alvo dos promotores. Em 2023, quando a secretaria decidiu abrir um processo licitatório para escolher empresas para operar as cantinas, tanto a Winefood — que à época tinha o controle de 31 das 46 lanchonetes do sistema penitenciário fluminense — quanto a D’Casa Comércio de Alimentos e Bebidas moveram ações questionando a concorrência. Nos dois processos, a Justiça determinou a suspensão do pregão eletrônico. A licitação jamais foi concluída. No relatório, a inteligência da Seap aponta a existência de “conluio de empresas e nacionais na tentativa de imbróglio jurídico para a manutenção do status quo, qual seja, permanente contratação emergencial das empresas que detêm o monopólio de exploração de cantinas na Seap desde o ano de 2015”.
Uso do nome de presos
Após mais de três décadas funcionando, as cantinas dos presídios foram fechadas em julho do ano passado pela Seap, que seguiu uma recomendação do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP), órgão vinculado ao Ministério da Justiça e Segurança Pública. Menos de um mês após a decisão, a máfia das cantinas conseguiu uma liminar na Justiça para forçar a reabertura dos estabelecimentos — a investigação do MPRJ descobriu que advogados ligados ao grupo usaram nomes de presos para processar o estado, argumentando que os detentos estavam pleiteando o retorno das cantinas.
O desembargador Paulo Rangel deferiu a liminar sob a argumentação de que “a alimentação da cadeia é insalubre”. Em depoimento, no entanto, os detentos afirmaram que não tinham sequer conhecimento do objeto da ação quando assinaram as procurações. Segundo o Gaeco, “os advogados tinham como objetivo garantir a continuidade de uma prática que prejudica tanto o estado quanto os internos do sistema prisional, devido aos altos preços dos produtos vendidos”.
Em 31 de outubro, a decisão que reabriu as cantinas foi cassada pelo desembargador José Muiños Piñeiro Filho, do Órgão Especial: “A decisão da Seap não apenas seguiu uma orientação de órgão público federal competente, como também não se fez abrupta e autoritária, tendo sido comunicada previamente ao Ministério Público, Defensoria Pública, Conselho Penitenciário e, pode-se afirmar, também a este Tribunal de Justiça”, escreveu o magistrado.
Com base no relatório de inteligência da Seap e nas provas colhidas pelo Gaeco, a 1ª Vara Criminal Especializada em Organizações Criminosas expediu, em novembro passado, mandados de busca e apreensão contra a máfia das cantinas. Entre os alvos da operação Snack Time, havia um parente do agente penitenciário Adinei dos Santos, suspeito de ter herdado o controle das cantinas, e um advogado do grupo. Foram apreendidos celulares, que estão sendo analisados, e R$ 128 mil em dinheiro.
O que dizem os envolvidos
Procurada, a Seap informou, em nota, que, “nos últimos anos, por meio de sua Subsecretaria de Inteligência, monitorou a atividade das empresas que exploravam há décadas o serviço das cantinas no sistema prisional fluminense de forma precária e sem licitação, e enviou ao Ministério Público um relatório com todas as informações colhidas”. A secretaria afirma que “atuou incessantemente para regularizar as cantinas e intensificar o controle sobre o uso de seus espaços, que estavam sem instrumento contratual e o funcionamento se dava pela continuidade dos Termos de Permissão de Uso, vencidos desde outubro de 2020”. A pasta também alega que “tentou licitar o serviço, medida que atacava frontalmente os interesses das empresas envolvidas, o que fez com que as mesmas buscassem por judicializar o processo, conseguindo derrubar as licitações”.
Já a Winefood diz que “as alegações de existência de dívidas e fraudes são completamente infundadas e incompatíveis com a realidade”. Em nota, a empresa afirma que “todo o processo administrativo e contratual foi conduzido dentro da legalidade, sendo supervisionado e aprovado por órgãos como a Procuradoria Geral do Estado”. E critica a operação Snack Time: “a criminalização de advogados que exercem regularmente sua profissão é inaceitável e afronta os princípios constitucionais que garantem a ampla defesa e o contraditório”.
As demais empresas citadas não foram encontradas.